Hoje de manhã, depois de muito me espreguiçar e ainda de mau humor, parei de frente do espelho e percebi que pouco tinha mudado na minha imagem do dia anterior. O cabelo encaracolado completamente desalinhado, os olhos pesados do sono que me prendia à cama e os enormes dentes da frente que se destacam na minha boca e me fazem lembrar um castor. Veio-me à memória o que aconteceu quando tinha metade da minha idade.
Foi com seis anos que me enchi de coragem e tirei o primeiro dente. Parecia um pequeno baloiço a entrar e sair da minha boca, cada vez que comia ou quando a minha língua, teimosa, o empurrava para fora. Em casa todos festejaram o acontecimento, menos eu, que estive a choramingar durante uma hora, com medo de ficar tão feia como a avó Eugénia quando tirava a dentadura. Ver aqueles dentes de plástico a boiar num copo cheio de água, na mesa de cabeceira, é uma imagem que fica para sempre na mente de uma criança.
O meu pai, médico dentista, cheio de orgulho, tal era o meu feito, disse:
— Esta miúda tem talento. Quem sai aos seus não degenera.
A minha mãe telefonou à avó. Ouvi-a gritar:
— Finalmente!
“Finalmente o quê”, pensei eu, furiosa, examinando ao espelho o espaço vazio. “Porque é que me querem desdentada?”
Mas que beleza encontram as pessoas crescidas numa boca desdentada?
Seja como for, o primeiro dente que tirei foi parar dentro de uma caixinha forrada de algodão em rama e exibido a toda a gente como se fosse uma coisa milagrosa. Este e todos os outros que tirei ou foram caindo, passaram a primeira noite dentro de um saquinho de linho a cheirar a alfazema, debaixo da minha almofada. Esperava ansiosamente a visita da fada dos dentes. Ainda hoje não sei se deva acreditar na sua existência, mas é certo que na manhã seguinte, dentro do saquinho tinha sempre uma prenda à minha espera.
Dois anos depois do episódio que vos contei, já com oito anos compreendi: era por causa da minha estatura que eles queriam que eu perdesse os dentes.
Não é que os dentes façam crescer, estou a explicar-me mal. Vou explicar melhor, ou seja, vou começar pelo princípio.
Nasci de quase dez meses. Sentia-me confortável dentro da barriga da minha mãe e na verdade não tinha pressa nenhuma em vir cá para fora. Durante a gravidez ela teve diabetes. Sabem o que é? Bem, na verdade também não, mas acho que tem qualquer coisa a ver com açúcar a mais no sangue. Eu era tão grande que na maternidade todos me iam espreitar, porque parecia uma bebé de um mês. Para agravar o caso, da roupa comprada com tanta dedicação e amor, nada servia. Era a quarta filha, numa família de mulheres.
Quando me viram, a minha mãe, a minha avó e as minhas irmãs exclamaram:
— Meu Deus!
Só o meu pai teve a coragem de dizer a verdade:
— É sem tirar nem pôr um pequeno buda, mas bonita.
A minha avó, com a sensatez adquirida ao longo dos anos abafou o silêncio que encheu aquele quarto e disse:
— Que lábios lindos tem esta menina. Parece uma pequena rosa.
Queriam dar-me o nome de Benvinda, em homenagem à tia-avó paterna. Era uma joia de pessoa e também tinha formas arredondadas. Abençoado o momento em que uma das minhas irmãs, a terceira, descontente com o meu nascimento, se saiu com o seguinte desabafo:
— Só se a chamarem de Mal-vinda.
Nessa altura era demasiado pequena para protestar. Mas já me disseram que, no batizado, berrei durante toda a cerimónia. Aliás, como era caraterística minha, não parava quieta e consegui dar uma valente queda. O vestido branco, que vinha sendo usado a cada geração, foi brindado com uma mancha vermelha de sangue que escorreu quando abri o lábio.
Voltando à questão dos dentes. Compreendem que chamar Benvinda a uma miúda que só cabe em roupa duas vezes o tamanho normal é uma enorme irresponsabilidade. “Se ela continuar a ser desse mesmo calibre, como é que poderá suportar um nome tão absurdo?”, pensavam eles.
Creio que foi por isso que começaram a medir-me e a pesar-me a toda a hora e a todo o momento, festejando cada centímetro e cada grama a menos. E chamaram-me Sofia.
Pela minha parte, tudo fiz para não frustrar as expetativas da família e, com a ajuda de uma alimentação saudável e da minha boa vontade, cheguei pouco ou menos ao estado em que me descrevo na seguinte redação.
“A minha estatura é quase normal e não sou muito robusta, mas a minha avó diz que mais vale ser assim e inteligente, do que magra e estúpida. Tenho olhos verdes e coro com frequência, especialmente quando me zango. Ainda tenho na boca dentes de leite, poucos, e a minha mãe conta-os sempre que telefona à sua amiga Rute, que tem um filho magro desdentado que se chama Luisinho.”
Este Luisinho era-me antipatiquíssimo, mas não tanto devido ao físico, mais por causa daquela feia janela que tinha na boca e o fazia cuspir gafanhotos sempre que falava. Eu tinha um medo terrível de, perdendo os dentes, ficar parecida com ele. Mas ao mesmo tempo, depois de a minha mãe me ter dado a entender que ansiava pelo momento em que eles caíssem, já não conseguia suportá-los.
Por isso, quando me caía um dente, examinava todos os dias o meu espaço vazio e pensava com horror no Luisinho quando se ria e cuspia gafanhotos.
Agora, no sítio dos meus dois antigos dentes de leite, que eram pequeninos e bem proporcionados, tenho uns incisivos que me fazem parecer um castor!
E a minha mãe, mais aquela antipática da Rute, a dizer que eles cresceram bem!
Consolo-me pensando que o Luisinho teve de pôr um aparelho que parece um açaime ao contrário.
A ver se param com essas malditas comparações.