Autor(a):

Cristina Ferreira Grego
Cristina Ferreira Grego

Malditas comparações

Hoje de manhã, depois de muito me espreguiçar e ainda de mau humor, parei de frente do espelho e percebi que pouco tinha mudado na minha imagem do dia anterior. O cabelo encaracolado completamente desalinhado, os olhos pesados do sono que me prendia à cama e os enormes dentes da frente que se destacam na minha boca e me fazem lembrar um castor. Veio-me à memória o que aconteceu quando tinha metade da minha idade.

Foi com seis anos que me enchi de coragem e tirei o primeiro dente. Parecia um pequeno baloiço a entrar e sair da minha boca, cada vez que comia ou quando a minha língua, teimosa, o empurrava para fora. Em casa todos festejaram o acontecimento, menos eu, que estive a choramingar durante uma hora, com medo de ficar tão feia como a avó Eugénia quando tirava a dentadura. Ver aqueles dentes de plástico a boiar num copo cheio de água, na mesa de cabeceira, é uma imagem que fica para sempre na mente de uma criança.

O meu pai, médico dentista, cheio de orgulho, tal era o meu feito, disse:

— Esta miúda tem talento. Quem sai aos seus não degenera.

A minha mãe telefonou à avó. Ouvi-a gritar:

— Finalmente!

“Finalmente o quê”, pensei eu, furiosa, examinando ao espelho o espaço vazio. “Porque é que me querem desdentada?”

Mas que beleza encontram as pessoas crescidas numa boca desdentada?

Seja como for, o primeiro dente que tirei foi parar dentro de uma caixinha forrada de algodão em rama e exibido a toda a gente como se fosse uma coisa milagrosa. Este e todos os outros que tirei ou foram caindo, passaram a primeira noite dentro de um saquinho de linho a cheirar a alfazema, debaixo da minha almofada. Esperava ansiosamente a visita da fada dos dentes. Ainda hoje não sei se deva acreditar na sua existência, mas é certo que na manhã seguinte, dentro do saquinho tinha sempre uma prenda à minha espera.

Dois anos depois do episódio que vos contei, já com oito anos compreendi: era por causa da minha estatura que eles queriam que eu perdesse os dentes.

Não é que os dentes façam crescer, estou a explicar-me mal. Vou explicar melhor, ou seja, vou começar pelo princípio.

Nasci de quase dez meses. Sentia-me confortável dentro da barriga da minha mãe e na verdade não tinha pressa nenhuma em vir cá para fora. Durante a gravidez ela teve diabetes. Sabem o que é? Bem, na verdade também não, mas acho que tem qualquer coisa a ver com açúcar a mais no sangue. Eu era tão grande que na maternidade todos me iam espreitar, porque parecia uma bebé de um mês. Para agravar o caso, da roupa comprada com tanta dedicação e amor, nada servia. Era a quarta filha, numa família de mulheres.

Quando me viram, a minha mãe, a minha avó e as minhas irmãs exclamaram:

— Meu Deus!

Só o meu pai teve a coragem de dizer a verdade:

— É sem tirar nem pôr um pequeno buda, mas bonita.

A minha avó, com a sensatez adquirida ao longo dos anos abafou o silêncio que encheu aquele quarto e disse:

— Que lábios lindos tem esta menina. Parece uma pequena rosa.

Queriam dar-me o nome de Benvinda, em homenagem à tia-avó paterna. Era uma joia de pessoa e também tinha formas arredondadas. Abençoado o momento em que uma das minhas irmãs, a terceira, descontente com o meu nascimento, se saiu com o seguinte desabafo:

— Só se a chamarem de Mal-vinda.

Nessa altura era demasiado pequena para protestar. Mas já me disseram que, no batizado, berrei durante toda a cerimónia. Aliás, como era caraterística minha, não parava quieta e consegui dar uma valente queda. O vestido branco, que vinha sendo usado a cada geração, foi brindado com uma mancha vermelha de sangue que escorreu quando abri o lábio.

Voltando à questão dos dentes. Compreendem que chamar Benvinda a uma miúda que só cabe em roupa duas vezes o tamanho normal é uma enorme irresponsabilidade. “Se ela continuar a ser desse mesmo calibre, como é que poderá suportar um nome tão absurdo?”, pensavam eles.

Creio que foi por isso que começaram a medir-me e a pesar-me a toda a hora e a todo o momento, festejando cada centímetro e cada grama a menos. E chamaram-me Sofia.

Pela minha parte, tudo fiz para não frustrar as expetativas da família e, com a ajuda de uma alimentação saudável e da minha boa vontade, cheguei pouco ou menos ao estado em que me descrevo na seguinte redação.

“A minha estatura é quase normal e não sou muito robusta, mas a minha avó diz que mais vale ser assim e inteligente, do que magra e estúpida. Tenho olhos verdes e coro com frequência, especialmente quando me zango. Ainda tenho na boca dentes de leite, poucos, e a minha mãe conta-os sempre que telefona à sua amiga Rute, que tem um filho magro desdentado que se chama Luisinho.”

Este Luisinho era-me antipatiquíssimo, mas não tanto devido ao físico, mais por causa daquela feia janela que tinha na boca e o fazia cuspir gafanhotos sempre que falava. Eu tinha um medo terrível de, perdendo os dentes, ficar parecida com ele. Mas ao mesmo tempo, depois de a minha mãe me ter dado a entender que ansiava pelo momento em que eles caíssem, já não conseguia suportá-los.

Por isso, quando me caía um dente, examinava todos os dias o meu espaço vazio e pensava com horror no Luisinho quando se ria e cuspia gafanhotos.

Agora, no sítio dos meus dois antigos dentes de leite, que eram pequeninos e bem proporcionados, tenho uns incisivos que me fazem parecer um castor!

E a minha mãe, mais aquela antipática da Rute, a dizer que eles cresceram bem!

Consolo-me pensando que o Luisinho teve de pôr um aparelho que parece um açaime ao contrário.

A ver se param com essas malditas comparações.

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Cristina Ferreira Grego
Cristina Ferreira Grego

Cristina Ferreira Grego nasceu em Lisboa, a 7 de dezembro de 1977. Licenciou-se em Medicina Dentária na Faculdade de Medicina Dentária da Universidade de Lisboa em 2003. É Diretora Clínica nas Clínicas Médicas Amatus Lusitanus. Fez diversas pós graduações na sua área de especialidade, em Portugal e no estrangeiro.

 Em 2020, iniciou o primeiro curso de escrita criativa, embora tenha sido desde cedo uma área de grande interesse. Participou desde então em concursos literários, tendo ficado classificada no Top 10 do Campeonato de Escrita Criativa Poeta António Aleixo. Submeteu contos e textos para outros prémios literários a nível nacional. Faz parte do grupo de autores que participaram na coletânea «O Tempo das Palavras com Tempo» com o conto «Carpe Diem», lançado em janeiro de 2021.

Adora viajar, enquanto tempo de cultura e de reflexão. Gosta de viver o presente com uma perspetiva no futuro. Nos tempos livres dedica-se à leitura, à escrita, mas a sua grande paixão são as suas filhas Madalena e Carolina. Sente que o amor, os afetos e a união familiar são a sinergia perfeita que a move e a acalenta nos desafios existenciais.

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