Trabalho há 27 anos. São 27 anos que incluem, creio, tudo aquilo que os vossos anos de trabalho incluem, sejam eles em maior ou menor número do que os meus: fases de certeza, claro propósito e júbilo; períodos de confusão, questionamento e inferno; e uma robusta maioria de dias corriqueiros, imemoráveis, que contribuem para uma sensação de conformidade porque, afinal, trabalhar é o que se espera de todos nós.
Foi muito cedo, com certeza numa dessas fases que não deixam rasto — porque as outras não abonam muito a favor da lucidez — que percebi que o mundo tantas vezes sórdido do trabalho pode suplantar a genialidade dos Monty Pyton, de Ricky Gervais ou dos Gatos Fedorentos quando parodiam o desempenho de uma profissão, sobretudo se esta implicar estar fechado num escritório, especar face a um computador horas a fio, aturar hierarquias, atender o público (que não, não tem sempre razão!) ou fazer de conta que se trabalha em equipa. Perdi a conta às vezes que me vi embrulhada em episódios para além de absurdos, cenas que espoletaram gargalhadas primeiro, crises existenciais depois e um par de feridas que ainda me assaltam o sono sob a forma de pesadelos. Neles, em vez de dar asas à minha vontade de gritar “Prefiro não o fazer!”, vontade tantas vezes reprimida estando desperta, limito-me a percorrer um labirinto feito de escritórios com janelas para o escuro e corredores pintados de preto e cinzento que desembocam numa máquina de café junto à qual me deixo cair e choro até acordar.
Perante este estado de coisas, os livros — com as suas histórias reais ou ficcionadas, os seus factos históricos, os seus ensaios, as suas instigantes questões éticas e os inúmeros portais para outras possibilidades de ser e de trabalhar — foram-me indispensáveis: o objecto propriamente dito, apertado entre as mãos, serviu de fio de terra e de fio de prumo; as narrativas foram às vezes escudo, outras escape; a identificação com os personagens ou com os argumentos dos autores proporcionou respostas, discernimento, alívio e coragem.
Quando pude metamorfosear o “Prefiro não o fazer”, de Bartleby[1], num ponto final, quando iniciei o meu processo de purga (até ver com mais sucesso do que o personagem de Melville), não conhecia todos os contornos da história daquele escrivão que vejo como inspirador nos seus hábitos de consumo espartanos (de facto, um dos segredos para não se precisar de trabalhar tanto é comprar menos) e paradoxal noutros aspectos da sua personalidade: opositor, assertivo e resistente por um lado, mas também desistente e, tudo indica, insano, por outro. Uma das hipóteses levantadas para justificar a sua aparente depressão prende-se com um trabalho anterior nos correios — a absurda tarefa de lidar com a correspondência devolvida por não ser possível localizar os destinatários, quiçá mortos.
Foi então que me lembrei do ensaio “On the Phenomenon of Bullshit Jobs: A Work Rant”[2], publicado com estrondo em 2013 pelo antropólogo David Graeber (e depois desenvolvido num volume com mais de 300 páginas, publicado em 2018 com o título “Bullshit Jobs”[3]). Segundo Graeber, a classe dirigente percebeu que trabalhadores produtivos, felizes e com tempo livre constituem um enorme perigo para o capitalismo, daí a necessidade de criar trabalhos, quaisquer trabalhos, até trabalhos de merda!, para manter a humanidade afastada dessa purulência que é o ócio. Isso não impede, porém, que milhões de pessoas saibam ou intuam estar a desempenhar tarefas desnecessárias, o que constitui uma forma de violência psicológica e está na origem de um dano moral e espiritual que nos adoece coletivamente.
Terá sido Bartleby, ali pelo ano de 1853, uma das primeiras vítimas de um trabalho de merda? Contrariamente ao escrivão, que morreu jovem, consumido pela letargia, o autor Albert Cossery[4], adepto da indolência e do desprendimento material, crítico da lógica produtivista dominante, viveu até aos 94 anos sempre dedicado ao lento prazer de observar, pensar e escrever muito, muito devagar. Publicou apenas oito livros, quase sempre protagonizados por personagens inteligentes, ociosos, focados na busca do prazer e que recusam o trabalho como um imperativo.
Se um dia vos apetecer mandar tudo à fava — nem que seja apenas como exercício teórico, um delírio da vossa imaginação —, o conto de Melville, o ensaio de Graeber e um romance de Cossery são as minhas sugestões biblioterapêuticas. Mas, claro, aceito que prefiram não o fazer!
[1] “Bartleby, o Escrivão”, Herman Melville, Penguin Clássicos, 2022, ISBN 979989784632
[2] “On the Phenomenon of Bullshit Jobs: A Work Rant”, de David Graeber, em Strike Magazine, 2013: https://www.strikemag.org/bullshit-jobs/
[3] “Trabalhos de Merda”, de David Graeber, Edições 70, 2022, ISBN 9789724425320
[4] Cairo 1913 – Paris 2008