Autor(a):

Alexandra Maria Duarte

Mãos d’Ouro e Línguas de Prata

Houve um tempo em que todos fomos reis e escrevemos a nossa própria história. Coube-nos, então, imortalizar no Livro Eterno a nossa passagem por esta terra que é de todos. Sempre assim o fez cada família, ciente da efemeridade de cada instante vivido.

«Perdoem-me a intrusão, mas penso haver lugar, desde já, a uma pequena explicação: o Livro – o mais precioso bem encontrado em qualquer lar – é portador da história de cada linhagem, de gerações passadas e vindouras, marcadas em páginas que nunca têm fim. Trata-se de um livro eterno, que reclama para si toda e qualquer narrativa digna de registo, por parte de cada família sua proprietária. Obrigado.»

Naquele tempo de reis e rainhas existiram, também, Perpetuadores — Mãos d’Ouro e Línguas de Prata — e, ainda, alguns Inquisidores que, demos graças, rareavam. Tal como um sacerdote, responsável pela sua paróquia, também os Perpetuadores estavam atribuídos a várias famílias, sendo chamados sempre que havia algo a registar no Livro. Só eles o podiam fazer.

«Permitam-me, novamente, intrometer-me, mas julgo necessário dizer que não se sabe como se nasce Mão d’Ouro ou Língua de Prata. Sabe-se que não é traço de família e que existem desde que o tempo é tempo e assim continuará a ser. Será, talvez, dom concedido por deuses a algumas poucas almas tidas por merecedoras. Ao recém-nascido nota-se-lhe um brilho na mão pequenina ou na minúscula língua, que grita a sua chegada ao mundo. Assim se reconhece um futuro Perpetuador. Depois, só mesmo após a morte — a língua, de facto, torna-se prata ou uma das mãos transforma-se em ouro. Atrevo-me, ainda, a dizer que entre ouros e pratas há, por vezes, alguma competição; mas não passa, contudo, de uma rivalidade salutar, pois ambos sabem que laboram por um bem maior. Adiante.»

***

O corpo fora encontrado pelos primeiros raios da aurora, que abrilhantavam a areia negra da praia onde repousava. Chamadas as autoridades competentes, vieram mestre e aprendiz. Logo se debruçaram sobre o corpo: calças de linho escuras, túnica branca, colar de torcedura de linho, de onde pendia uma pena. Era calvo e o rosto apresentava-se sereno. O braço direito dobrado apoiava a mão sobre o peito, o braço esquerdo estava estendido ao longo do corpo e a mão cerrada com força agarrava parte de um pequeno e amarrotado caderno.

— Deve ser importante, para tê-lo agarrado dessa maneira, na sua última hora — observou o mestre.

— Vai ser complicado recuperá-lo.

Ambos pensavam o mesmo, como é que iriam tirar o caderno de dentro de uma mão de ouro maciço?

— Um Mão d’Ouro, mestre, provavelmente obra de algum Inquisidor.

A alguns metros do corpo estava uma mala com pertences do falecido: um caderno com anotações variadas, outro com o registo das famílias para quem perpetuava a história e um calendário com marcações futuras. Havia ainda uma fotografia, com data de dois dias atrás, de um edifício apalaçado que parecia ser um hospital. Enquanto observava os objectos, o mestre foi surpreendido por um pequeno grito do seu ajudante. Virou-se e viu o rapaz chocado a olhar para o rosto do defunto.

— O que foi rapaz? Parece que viste um fantasma.

Boquiaberto, apontava para a boca do falecido.

— Prata, mestre, prata!

O homem acercou-se e quase deu um salto ao ver a língua reluzente no interior da boca ligeiramente entreaberta.

— Mãos de ouro e língua de prata, mestre?

O ancião franziu o sobrolho, os olhos pensativos fitaram o mar.

— Não é do teu tempo, nunca deves ter conhecido nenhum; eu tão pouco, mas lembro-me, em criança, de ouvir falar. Aparece um ou dois a cada quatro ou cinco gerações, são seres excepcionais, considerados abençoados — prostrou um joelho na areia — e agora está morto. Sabe-se lá se haverá algum outro por aí.

***

Efectuadas as diligências necessárias, o corpo é retirado e levado pelo coche policial, para que, posteriormente, se efectue a autópsia. O inquérito prossegue. Os ajudantes oficiais, zelosos na investigação, através dos contactos familiares que estavam num dos cadernos, perceberam que o Perpetuador estava longe do seu burgo. Questionavam-se, agora, sobre o que o teria trazido tão longe. Tentavam identificar o edifício da fotografia e, sobretudo, queriam aceder ao caderno que a mão agarrava.

O olho do aprendiz agigantava-se através da lupa com que observava a fotografia.

— Mestre, é mesmo um hospital, aqui neste canto vê-se uma ambulância e tem qualquer coisa escrita, acho que o podemos encontrar.

E, de facto, após algumas verificações e telefonemas feitos, puderam identificar a edificação de aspecto apalaçado.

No dia seguinte, mestre e aprendiz apresentaram-se defronte o edifício. De fotografia na mão, ora observavam um, ora observavam outro.

— Mestre isto vai levar uma eternidade!

— E então, tens algo melhor para fazer?

— Mas isto é enorme, começamos por onde?

— Pelo rés-do-chão.

Percorreram os andares, fizeram perguntas, mostraram a fotografia do Perpetuador. Falaram com cuidadores, enfermeiros, auxiliares, médicos, até com algumas visitas. Ninguém reconhecia o Perpetuador, nem sequer tinham ouvido falar de um crime ocorrido nos arredores. Sem resultados, o cansaço trazia já algum desalento. Decidiram parar um pouco para recuperar forças e sentaram-se num pequeno divã de estilo oriental que acompanhava uma parede num amplo corredor. Ainda mal se tinham sentado, quando passaram duas enfermeiras em direcção ao elevador. Mestre e aprendiz conseguiram ouvir algumas palavras soltas da conversa entre as duas: “…bebé lindo, acabado de nascer, …ficámos preocupados, … língua esbranquiçada…uma mãozinha amarelada… esteve em observação… afinal correu tudo bem…”. Entraram no elevador e a porta fechou-se.

***

A investigação tinha já decifrado alguns enigmas. Havia, porém, ainda duas questões em aberto: qual a causa da morte e como aceder ao caderno. Havia sugestões: “…e se partíssemos a mão…, e se a cortássemos…, e se rasgássemos a parte do caderno que ficou de fora…, e se…, e se…”.

— E se derretêssemos a mão… — aventurou o mestre.

«Por fim! Valha-me Deus, derretam a mão e tentem salvar o caderno. De qualquer modo, para onde vou, não irei precisar dela. Adiantando-me à história, dir-vos-ei que nesse pequeno caderno estão as instruções necessárias à aprendizagem do iniciado Mão d’Ouro Língua de Prata; o bom do mestre saberá entregá-lo aos pais, para que o pequeno possa vingar e exercer laboriosamente o seu mester. Em breve, saberá também que, afinal, morri de causas naturais, não se tratou de um Inquisidor. Eles tentam, mas nós somos mais e melhores e continuamos a crescer. E agora, por amor de Deus, façam-me o funeral de uma vez! Afinal todo o rei merece o seu descanso.»

A pedido da Autora, este texto não segue a grafia do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

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AUTOR(A)
Alexandra Maria Duarte

Nascida em Castelo Branco, rumou a Lisboa para estudar Línguas e Literaturas Modernas. Após a licenciatura fez uma pós-graduação em Tradução. Entre 2000 e 2001 participou na redacção e edição do livro «Ribatejo – Receituário Regional Tradicional», tendo também colaborado, ocasionalmente, com a revista «Cardápio – Saber Viver». A paixão pela escrita sempre se manteve, mas só em 2020 começa a frequentar cursos de escrita criativa. Vem a publicar o seu primeiro conto na colectânea «Não vão os lobos voltar», obra que chega ao público em 2021 e, no ano seguinte, apresenta o primeiro conto infantil na colectânea “Contos que contas tu”.

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