Autor(a):

João Ventura
João Ventura

Mestres da renúncia

“Escrever poesia depois de Auchswitz é bárbaro”, afirmou Adorno. E Paul Celan, que viveu em carne viva a experiência do extermínio, num poema dedicado a Hölderlin, e que é uma elegia à própria linguagem, repetiu até à laceração de si mesmo, até ao emudecimento total, a mesma promessa angustiante: “Se viesse, / se viesse um homem / se viesse um homem ao mundo, hoje, com / a barba de luz dos / patriarcas: só poderia, / se falasse deste tempo, só / poderia balbuciar, balbuciar / sempre sempre / só só” (“Pallaksch, Pallaksch”, in Sete rosas mais tarde).

Caídos no torvelinho da impotência, num tempo de silêncio e destruição, a que Hannah Arendt chamou a “banalidade do mal”, escritores houve que sucumbiram à derrocada da razão e da linguagem, calando a sua fala, negando-se a escrever, abraçando o silêncio depois de antes terem proferido palavras que anunciavam a promessa de novas palavras. Como se fosse um rio que de repente tivesse secado, deixando apenas no leito pedregoso a nostalgia do que nunca mais será dito. Como se escrever, acrescentar semântica à desordem do mundo, mais não fizesse do que aumentar a catástrofe.

Hoffmansthal abriu o vertiginoso século XX mostrando o seu próprio desconcerto face à impossibilidade da comunicação através da escrita, prometendo na sua Carta de Lord Chandos, em 1902, nunca mais escrever. Kafka alude, depois, à impossibilidade da literatura, sobretudo nos Diários.

A experiência de impotência e renúncia, desencanto e ocultação é sucessivamente reiterada ao longo do século XX por escritores bloqueados, traumatizados, emudecidos diante da anormalidade do mundo: Robert Walser, Robert Musil, Kafka, Henri Roth… Tal como antes sucedera com Joseph Joubert e Hölderlin. E com Rimbaud cuja insensata santidade o levou a pronunciar o mais belo manifesto de vida: “sobretudo fumar, beber licores fortes como o metal fundido” (“Mau sangue”, in Uma cerveja no inferno) e, com uma singular precocidade, escrever toda a sua obra até aos dezanove anos, para, depois, partir para a aventura abissínia.

A interrupção da escrita, o silêncio, a renúncia de existir como autor, eis o que rastreia Enrique Vila-Matas em Bartleby & Companhia, uma espécie de catálogo de instantes fulgurantes dessa “pulsão negativa ou atração pelo nada que faz com que certos criadores (…) renunciem à escrita (…) e fiquem, um dia, literalmente paralisados para sempre”, ilustrando a ideia já estabelecida por Barthes, Foucault ou Agamben, do “desaparecimento do sujeito” e “morte do autor” como ato produtivo necessário para a efetivação da obra.

Tendo como base Bartleby, o escriturário – o personagem do conto de Herman Melville  — que, quando alguém pretendia encarregá-lo de alguma tarefa, respondia invariavelmente que “preferia não o fazer” (“I would prefer not to”) — espécie formulação não exaltante da negatividade moderna —, Vila-Matas oferece-nos um caderno de notas de pé de página, ou “notas sem texto” como ele lhes chama, sobre a síndroma de Bartebly, esse “mal endémico das letras contemporâneas”.

Uma espécie de fresco onde se respira um humor shandiano cuja principal virtude, no que a mim me toca, é a de avivar-me a memória e o desejo de seguir no rasto de Rimbaud, Walser, Roth que fazem parte da genealogia literária de Vila-Matas. A mesma que inspira a filologia do inútil de que é feita esta minha tentativa de não fracassar na escrita desta nota de rodapé.

Entretanto, se alguém quiser aprofundar o significado da renúncia bartlebiana ao absoluto vazio da razão e da vontade, sugiro que acrescente à leitura do livro de Vila-Matas, a leitura do ensaio de Giorgio Agamben, Bartleby, escrita da potência, onde o filósofo italiano discorre sobre niilismo precoce do escrivão de Melville.

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João Ventura
João Ventura

Fui durante largos anos professor de língua e literatura portuguesas, e durante três anos, de cultura portuguesa na Sorbonne, em Paris. Também lecionei na Universidade do Algarve cadeiras de gestão cultural e exerci o cargo de Diretor Regional de Cultura do Algarve. Fui bibliotecário. E fui diretor do TEMPO.

Como professor, bibliotecário ou gestor e programador cultural, a crónica da minha trajetória profissional tem duas marcas que a definem: a opção pelo sector público e pela criatividade. Por isso, a minha formação e aprendizagem nunca a dou por concluída, seja regressando uma e outra vez aos bancos da universidade seja através da leitura e das viagens que são outras duas marcas da crónica da minha aventura pessoal.

Gosto de ler, escrever e viajar. E estas três atividades furtivas ligam-se entre si. Umas vezes, leio e viajo para escrever. Outras vezes, leio e escrevo para viajar em seguida aos lugares que antecipei em crónicas de viagem inventadas. Destas deambulações, umas vezes literárias, outras geográficas, fui deixando rastos no papel. Na revista Atlântica, cujo projeto editorial criei e da qual fui diretor, e nos blogues O que cai dos dias, O leitor sem qualidades e, agora no blogue nómada Fora daqui.

Gosto de me ver como um criador de projetos culturais, alguém que faz acontecer ideias seja na vida profissional seja na vida privada. Atualmente, trabalho na Biblioteca Municipal de Portimão, desenvolvendo ideias e projetos de divulgação do livro e da leitura. E tenho em mãos, a escrita de um livro de crónicas de viagens literárias. Também gosto de cozinhar.

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