“Escrever poesia depois de Auchswitz é bárbaro”, afirmou Adorno. E Paul Celan, que viveu em carne viva a experiência do extermínio, num poema dedicado a Hölderlin, e que é uma elegia à própria linguagem, repetiu até à laceração de si mesmo, até ao emudecimento total, a mesma promessa angustiante: “Se viesse, / se viesse um homem / se viesse um homem ao mundo, hoje, com / a barba de luz dos / patriarcas: só poderia, / se falasse deste tempo, só / poderia balbuciar, balbuciar / sempre sempre / só só” (“Pallaksch, Pallaksch”, in Sete rosas mais tarde).
Caídos no torvelinho da impotência, num tempo de silêncio e destruição, a que Hannah Arendt chamou a “banalidade do mal”, escritores houve que sucumbiram à derrocada da razão e da linguagem, calando a sua fala, negando-se a escrever, abraçando o silêncio depois de antes terem proferido palavras que anunciavam a promessa de novas palavras. Como se fosse um rio que de repente tivesse secado, deixando apenas no leito pedregoso a nostalgia do que nunca mais será dito. Como se escrever, acrescentar semântica à desordem do mundo, mais não fizesse do que aumentar a catástrofe.
Hoffmansthal abriu o vertiginoso século XX mostrando o seu próprio desconcerto face à impossibilidade da comunicação através da escrita, prometendo na sua Carta de Lord Chandos, em 1902, nunca mais escrever. Kafka alude, depois, à impossibilidade da literatura, sobretudo nos Diários.
A experiência de impotência e renúncia, desencanto e ocultação é sucessivamente reiterada ao longo do século XX por escritores bloqueados, traumatizados, emudecidos diante da anormalidade do mundo: Robert Walser, Robert Musil, Kafka, Henri Roth… Tal como antes sucedera com Joseph Joubert e Hölderlin. E com Rimbaud cuja insensata santidade o levou a pronunciar o mais belo manifesto de vida: “sobretudo fumar, beber licores fortes como o metal fundido” (“Mau sangue”, in Uma cerveja no inferno) e, com uma singular precocidade, escrever toda a sua obra até aos dezanove anos, para, depois, partir para a aventura abissínia.
A interrupção da escrita, o silêncio, a renúncia de existir como autor, eis o que rastreia Enrique Vila-Matas em Bartleby & Companhia, uma espécie de catálogo de instantes fulgurantes dessa “pulsão negativa ou atração pelo nada que faz com que certos criadores (…) renunciem à escrita (…) e fiquem, um dia, literalmente paralisados para sempre”, ilustrando a ideia já estabelecida por Barthes, Foucault ou Agamben, do “desaparecimento do sujeito” e “morte do autor” como ato produtivo necessário para a efetivação da obra.
Tendo como base Bartleby, o escriturário – o personagem do conto de Herman Melville — que, quando alguém pretendia encarregá-lo de alguma tarefa, respondia invariavelmente que “preferia não o fazer” (“I would prefer not to”) — espécie formulação não exaltante da negatividade moderna —, Vila-Matas oferece-nos um caderno de notas de pé de página, ou “notas sem texto” como ele lhes chama, sobre a síndroma de Bartebly, esse “mal endémico das letras contemporâneas”.
Uma espécie de fresco onde se respira um humor shandiano cuja principal virtude, no que a mim me toca, é a de avivar-me a memória e o desejo de seguir no rasto de Rimbaud, Walser, Roth que fazem parte da genealogia literária de Vila-Matas. A mesma que inspira a filologia do inútil de que é feita esta minha tentativa de não fracassar na escrita desta nota de rodapé.
Entretanto, se alguém quiser aprofundar o significado da renúncia bartlebiana ao absoluto vazio da razão e da vontade, sugiro que acrescente à leitura do livro de Vila-Matas, a leitura do ensaio de Giorgio Agamben, Bartleby, escrita da potência, onde o filósofo italiano discorre sobre niilismo precoce do escrivão de Melville.