Moacyr Scliar imaginou um judeuzinho brasileiro que nasceu metade cavalo. O romance é uma fábula alada, que atravessa o tempo.
Na altura de dar os primeiros passos, o bebé Guedali Tartakovsky apercebe-se da sua cauda farta, do grande bojo da barriga, do pénis, gigantesco e… circuncidado. Leva à boca uma das patas, mas, dada a desproporção entre as duas partes tão contrastantes do seu corpo, acaba por bater com o casco no lábio, ferindo-o. É assim, com esta primeira experiência de dor, que Guedali se dá conta «do conflito entre a dureza e a maciez, entre o bruto e o delicado, entre o equino e o humano». O Centauro no Jardim, romance datado de 1980, é uma fábula brilhante sobre a dupla identidade, a inadequação social do sujeito e o desejo de assimilação, e foi colocado pelo norte-americano National Yiddish Book Center entre as cem melhores obras de temática judaica dos últimos dois séculos.
Gaúcho (de Porto Alegre), filho de imigrantes judeus russos (como Guedali), Moacyr Scliar (1937-2011) projetou na prosa esta insólita combinação de origens. O corpo central da sua obra literária é alegórico, fabuloso, com um toque de absurdo kafkiano e humor iídiche (um mecanismo de defesa, «aquele nosso meio sorriso, meio amargo, meio filosófico», dizia ele). E, no entanto, na fisicalidade e na sensualidade, o texto parece ter brotado dos pampas; na objetividade, dos prontuários clínicos. Scliar, médico (higienista, com pós-graduação feita em Israel), compulsivo contador de histórias, escritor profissionalíssimo, publicou mais de 80 livros, em todos os géneros ficcionais. Ganhou três prémios Jabuti (1988, 1993, 2009) e uma cadeira entre os «imortais» da Academia Brasileira de Letras.
O Centauro no Jardim vive do paradoxo entre a extraordinária condição do protagonista e o cenário realista das suas aventuras, vividas numa fazenda do Rio Grande do Sul, em São Paulo ou em Marrocos (onde o centauro Guedali e a sua amada, Tita – não judia, mas também centaura —, se fazem operar e adquirem finalmente pernas, ainda que mantenham cascos, que os obrigam a usar botas ortopédicas). A metáfora da cisão está presente desde logo no contraste entre o recurso a uma figura mitológica grega (o centauro, símbolo da fusão entre o humano e o bestial), adotada pelos modernistas latino-americanos, e todas as outras referências culturais e religiosas, advindas maioritariamente do universo judaico. O choque da diferença motivou os pais de Guedali a emigrar para o Brasil, fugidos ao confronto entre os habitantes dos shtetl e os cossacos russos, que os pisavam sob os seus cavalos possantes. A metáfora da dualidade impregna também o cenário secundário: o de uma classe média em conflito com as convenções e em busca de uma possibilidade socialista, mas na qual também germina o Golpe Militar de 1964.
Tornada familiar pelo tom empregue pelo narrador (tão direto quanto encantatório), pelo uso do humor e pela ancoragem em referências realistas (por exemplo, à afirmação de Guedali no mundo dos negócios), a dimensão fantástica ou utópica desta história serve para que Scliar eleve a narrativa para além do tempo. Neste aspeto, O Centauro no Jardim ultrapassa as coordenadas do realismo mágico e insere-se na longa tradição das alegorias rabínicas. A interpretação quer-se mais-do-que-literal, isto é, da ordem do estranhamento em relação ao que se lê e ao que se narra, pleno de significados ocultos.
O Centauro no Jardim, Moacyr Scliar, Caminho, 326 págs., 19.90 euros
A pedido da Autora, este texto não segue a grafia do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.