“Eu não tenho paredes. Só tenho horizontes.”
Mário Quintana
Nos momentos difíceis esquecemo-nos, não raras vezes, de prestar atenção a detalhes que desvalorizamos, mas que nos obrigam a rever toda a nossa humanidade.
O meu pormenor foi uma parede.
Naquele dia, mal a manhã abrira a sua cortina, reparei num som ritmado, ainda que incómodo. O olhar de lince alcançou uma casa em construção, onde um vulto, com um martelo perfurador, talhava retângulos numa parede. Apreciei a luta, homem e objeto, durante alguns momentos. Com o picotado em realce, o semblante pousou o martelo e muniu-se de uma marreta. Braços puxados atrás em busca de balanço e a força humana investiu contra o retângulo tatuado na parede, a fraqueza que a derrubaria. Mais de uma dúzia de pancadas persistentes, a irmandade de tijolos cedeu e despedaçou-se aos seus pés. Senti um formigueiro com aquele desfecho e decidi não pensar mais em paredes. A minha mente, em brincadeira, defendeu-se e relembrou-me que Paredes é uma bela cidade para praticar Karting. Ri-me da associação.
Nessa semana, o dia a dia encarregou-se de me emparedar os pensamentos, que constantemente embatiam em situações onde a parede parecia ser o foco principal: na natação, sorri ao ver como uma atleta se apoiava na parede para alongar; uma lenda da minha cidade desenhou-se na parede lateral de um prédio; enquanto lia, admirei a criatividade que Allan Poe vertera numa parede.
Vasculhei as recordações na busca inglória de um significado para a minha curiosidade intelectual se debruçar sobre as paredes dos outros e ignorar a minha.
Sem aviso, a minha mente decidiu que era altura de compreender o meu transtorno. Recordei o dia em que vi a minha infância estilhaçada numa parede.
Aos oito anos não se perde tempo a filosofar sobre as injustiças que encontramos nas rotundas da vida. O anoitecer dizia-me que o pai precisava de comer. A bebida não era alimento — no seu caso, tornara-se a fonte de viver. O tabuleiro chocalhava no caminho até à cama, mas a minha vontade de ajudar superou o receio. Acreditava que podia trazer de volta o seu ar divertido e voz meiga.
Tal como num filme, desde o tabuleiro a voar até ao estrondo dos cacos decorreram séculos de segundos. Não perguntei a razão, talvez não a compreendesse ou não quisesse confirmar que precisava de abandonar a criança feliz que fora até ali. Dirigi-me à cozinha e trouxe um saco, o alguidar, a esponja e o detergente. Sob uma chuva de palavras que tentei não ouvir, limpei tudo, menos aquela mancha na parede, a marca definitiva de um ciclo que se iniciava sem que eu o pudesse retardar.
Hoje compreendo o motivo de não apreciar fotografias ou quadros pendurados nas paredes. Por isso, as paredes dos outros parecem mais acolhedoras do que as minhas. Não por uma questão de estética, mas porque a minha memória infantil assim o impôs. Construí um muro aos oito anos que permanece intocável e esta conclusão abana os alicerces da minha alma. Pela primeira vez, analiso as minhas paredes, feitas de recordações, onde desfilam quadros tristes, onde projeto aquela cena vezes sem conta, onde sei que se finou a minha infância.
Sacudo os pensamentos, mas é inevitável voltar às minhas profundezas. As paredes ressoam lágrimas, escondem segredos, protegem do Bem e do Mal; elas impediram que uma menina de oito anos continuasse a sonhar com nuvens de algodão doce.
Perguntei a alguém como eram as suas paredes. As dúvidas surgiram no olhar e o sorriso denunciava incredulidade. Insisti. «Nunca pensei nisso. Sei lá. São somente paredes.»
Regresso a casa e sento-me à secretária. Deixo a minha imaginação fluir a partir de um ponto imaginário na irmandade de tijolos que se perfila à minha frente: paredes feitas de esponja para os desesperados; decoradas com pepitas de chocolate para os gulosos; marcadas com palavras para os que querem desistir. Tudo isto projeto nas paredes dos outros. E nas minhas?
Continuo a querê-las luminosas, resistentes e vazias de emoção. Neste momento, sei com toda a certeza que acabei de derrubar parte do muro que construí com as atitudes e palavras de outros, aquele muro que uma criança de oito anos ergueu ao limpar uma mancha na parede.