Na tua pele

Na tua pele

Imagina que tudo o que tens desaparece, que farias?

Sentada no asfalto, observo os ténis, a linha da costura pendurada, a sola escassa. 

O sol está a pôr-se, a brisa já se faz sentir, arrepia-me a pele. Facas espetam-se no estômago. O que anseio por uma sopa quente que o acalme!

 Olho em redor, cada um segue na sua vida, ninguém me olha.

Mas lá me encontram, sentada no passeio junto à “Estação de Campanhã”. De mochila às costas, com poucos pertences, documentos, roupas e pouco mais, foi tudo o que quedou.

Estendo o saco-cama no chão, coloco a mochila onde apoiarei a minha cabeça.

Descalço os ténis, escondo-os junto à parede deste meu canto de rua. Enfio-me dentro do saco-cama, escondo o rosto, as lágrimas encharcam-me os olhos. Tenho receio da noite, dos perigos a que me exponho.

Os carros passam na rua com rapidez, pessoas dão gargalhadas lá no fundo, alguns gritam, o mais exíguo ruído acelera-me o coração. 

Tento abstrair-me, ignorar que o saco-cama não repele o gelo que emana do solo, imaginar que existem quatro paredes à minha volta e um colchão confortável a amparar-me as costas.

Os músculos do corpo começam a latejar, não consigo arranjar uma posição confortável.

Em estado de alerta, sou vencida pelo cansaço e acabo por adormecer. Dormi cerca de três horas, já é dia de novo. Olho o relógio, oito da manhã. Num dia normal estaria a pé, com o rosto lavado e estômago preenchido. Pronta para mais um dia de trabalho.

E agora? Que fariam no meu lugar? Não pensei nas coisas mais básicas. O simples lavar de rosto pela manhã. Que farei às minhas coisas quando não estiver? Com certeza ninguém as levará, quem quereria os pertences de uma sem-abrigo?

Pego na carteira com os documentos e caminho. Sem destino, sem saber o que fazer.

Terei que arranjar um emprego, sem isso, reerguer-me é impossível. “Precisa-se empregada”, vejo o anúncio na montra do café da esquina. Talvez pudesse servir às mesas, fazer umas sandes, tirar uns cafés. Não é difícil.

Entro, dirijo-me ao balcão. “Não queremos aqui mendigos, nem empregados malcheirosos. Põe-te a andar”, foi o que ouvi. As lágrimas teimam em cair pelo meu rosto. Não poderei deixar que me tratem assim, mas têm razão. Quem me vai contratar, com esta roupa gasta e suja? 

Voltei ao meu canto de rua, recolhi todas as minhas roupas e só parei na primeira lavandaria self-service que encontrei. Hoje brotam pela cidade, há uns anos não seria tão simples encontrar uma.

Nos bolsos não resta muito dinheiro, mas com uns poucos trocos consigo lavar e secar toda a roupa.

Com mochila a brotar de cheiro a alfazema, volto ao meu caminho. 

Entro num café, peço para usar a casa-de-banho. Exigem que consuma, naturalmente. Não sei como poderei ter pensado o contrário. Poderia comprar uma água, mas prefiro sair. 

Conto os trocos, um euro e cinquenta e três cêntimos, é o que me resta. Aqui a água custaria entre os setenta e oitenta cêntimos.

Contas que há uns dias não precisaria de fazer, facilmente gastaria cem euros em bens desnecessários.

Entro no supermercado, olho para o preço da água, vinte e dois cêntimos, uma água de litro e meio. Aguento uns dias, foi o pensei. De estômago vazio é difícil resistir a tanta oferta alimentar.

Aproveito para utilizar a casa-de-banho. Amasso um pouco de papel de secar as mãos, passo por água e sabonete líquido, serve para me limpar e vestir uma roupa limpa.

Volto para o meu canto de rua, o resto dos meus poucos pertences estão intactos.

Hoje terei que comer, o meu corpo começa a falecer. Ouvi falar numa organização que distribui comida aos mais necessitados, nos Aliados. 

Estou a cerca de uma hora de distância a pé. Mas a distância não me demove, preciso de sustento.

Vislumbro ao longe uma enorme fila. Não me sinto tão sozinha nesta luta. 

Meia hora depois, finalmente, sobra uma tijela de sopa que me entregam. Recolho uma colher e sento-me no passeio. A tijela queima-me a mão, mas a sensação de calor é reconfortante. 

Após a primeira colherada não consigo parar, o sabor doce da cenoura põe-me as papilas gustativas a saltitar. Vejo uma menina de vestido cor-de-rosa vir na minha direção. Oferece-me um saco com um pão de forma e algumas conservas. A generosidade desta pequena criatura comove-me. Agradeço, lança-me um sorriso. 

Volto ao meu canto de rua. Não consigo acreditar no que vejo, ou melhor o que não vejo! A minha “casa” desapareceu. Quem teria interesse no meu saco-cama? Na minha mochila de roupas velhas?

O meu mundo desaba novamente.

Como irei dormir esta noite, com que agasalho?

Com a roupa que trago no corpo e saco de plástico na mão, deixo-me cair no cimento. A sensação de perda voltara. Já perdi tanto, terei que perder o quê mais? 

A tristeza volta a atacar o meu peito. Derrotada pelas circunstâncias, o desespero invade o meu olhar. De tanta lágrima derramar acabo por fechar os olhos. Aninhada, agarrada ao saco de plástico com o meu alimento dos próximos dias, ali jaz o meu corpo adormecido. Um pedaço de carne despojado num canto de rua, que não interessa a ninguém.

Num sobressalto abro os olhos, a claridade cega-me. Quatro paredes circundam-me. Sinto o cobertor em cima do corpo. O cheiro a sabão natural do lençol que me cobre e da almofada que me ampara. A pele quente e confortada.

Estou em casa, tudo não passou de um pesadelo.

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AUTOR(A)
Diana Martins
Diana Martins

Diana Martins reside em Vila Nova de Gaia, local onde nasceu em 1989.

Desde cedo que desenvolveu uma paixão pela escrita. Com apetência para o imaginário, inventava histórias e escrevia poemas.

Acabou por embrenhar no mundo do Direito, área na qual trabalha desde 2015.

Retornando ao desejo de escrever ficção, foi participando em cursos de escrita criativa e, pouco a pouco, espera fazer chegar aos outros as histórias que deambulam no seu íntimo.

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