Pedras roladas, sapos coaxantes, peixes distraídos, lama escura, limo esguio, folhas de árvores, detritos espúrios, pessoas lúdicas, ramos boiantes é o que o rio encontra no caminho, a diversidade infinita que toma para si. Também o escritor é um curso de água que serpenteia pela paisagem e se apropria do que lhe convém para se tornar rico e crescer. Como o rio, também a escrita necessita da fluidez que lhe garanta a sobrevivência, a soberba capacidade de contornar, desbastar ou incorporar os obstáculos.
A imaginação não irrompe do nada, ela necessita de alimentação do exterior. A mente que nada viu, observou, cheirou, ouviu, sentiu, saboreou é apenas um vaso oco, um cântaro decorativo, uma mala de viagem sem jornada nem bagagem. A imaginação é a capacidade de criar imagens, de reaproveitar o que os sentidos percecionaram e o que a mente misturou. Se entendermos que o trabalho do autor não passa por criar imagem, então o que faria exatamente? Nada. O escritor propõe pessoas e figuras que não existem, a que chamamos personagens; ações e acontecimentos que podem ou não ter ocorrido; ou ainda ambientes com realidade apurada ou pincelados com devaneio criativo. O ficcionista é, assim, o equivalente (em papel e alfabetos) ao antigo imaginário, o entalhador de santos para os altares das igrejas. Ambos comungam do poder de gerar imagem, a que, aqui, chamaremos imaginação.
O segundo poder a seguir ao da imaginação é o da criação (e rimam), porque a primeira é do âmbito do mental, da interioridade, e a segunda é da ordem dos pulsos e das mãos, da exteriorização. Não é ficcionista quem imagina, é-o quem cria a partir da imaginação. Porém, conceber a imaginação como psicológica não significa dar-lhe foros de genética, de determinismo biológico inato. Admitamos existirem traços individuais de ADN que capacitam alguns para um melhor (ou maior, mais acertadamente) imaginário, mas sem o rio seguir o percurso no seu leito de enriquecimento, como poderá chegar ao mar? Qualquer pretendente a criador de obra literária tem de manter os seus sentidos bem apurados, registar o mundo, ler jornais, ouvir conversas, folhear livros (muito), ir ao cinema, beber das mais variadas artes e de todos os movimentos do mundo, humanos e naturais.
O caderninho de apontamentos é arma que deve estar presente no coldre do escriba, por duas razões: capturar qualquer eflúvio de imaginação, sempre com a imponderabilidade de um géiser, ou fixar um quadro da realidade exterior, conversa, pessoa, gesto, ato, objeto, cheiro, melodia… Quem sabe? O escritor tem a obrigação da mundanidade, de fluir como um rio e arrebanhar tudo o que puder pelo caminho. É um coletor de generoso coração, capaz de transformar impressões e detritos existenciais em obras literárias.
São dádivas, senhores, são dádivas!