No país dos sonhos

No país dos sonhos

O Xénon 2020 partira de Rio das Pérolas, no Sudoeste Asiático, há mais de quatro horas. Faltavam seis para a sua chegada à Ilha dos Maoris do Norte. Sem turbulência é possível a entrada em funcionamento de soluções revolucionárias:   o aumento da envergadura de asas — manufacturadas com recurso a penas de alumínio e grafeno, usando os princípios e as técnicas complexas de pássaros em voo — em mais de cinquenta por cento. 

Os engenheiros da “Cruzeiroflot”, a nova construtora aeronáutica, conseguiram instalar, em toda a superfície de asas dos aviões, poderosíssimos painéis solares de uma geração que ainda não chegou a outras companhias. A isto junta-se a não menos inovadora possibilidade de planar sem o recurso dos motores, reduzindo em muito os gastos de combustível em viagens de longo ou muito longo curso a que estes aviões foram destinados. 

Devido à grande procura da novidade, a reserva de lugares dos voos teve de ser feita com uma antecedência de vários meses. Dentro do avião, a ocupar a maior parte das costas de cada banco, pode ver-se um ecrã táctil, grande e de fácil manuseio, que resguarda um poderosíssimo computador para acesso online a todos os lugares das cidades e países para onde estamos a viajar ou que já deixámos para trás. Basta que lhe forneçamos um número de identificação criado para o efeito, sucedendo-lhe de uma série de pedidos e acções. É possível, ainda, seguir pessoas ou instalações ao pormenor. Uma outra característica inédita da aeronave são as grandes superfícies do chão, do tecto e das paredes envidraçadas. Durante as viagens, quem não optar por ver, atenta ou distraidamente, um filme, ou ouvir música, pode observar estrelas que às vezes se atiram do céu, se for de noite ou, mais improvavelmente, seguir o rasto esbranquiçado de algum avião que viaje mais abaixo, se for de dia. Torna-se também motivo de distracção e curiosidade poder apreciar, através dessas superfícies vidradas, o trabalho dos flaps e o movimento automático das asas da aeronave, numa permanente adaptação às condições da turbulência. 

Numa das filas de bancos da frente viaja um casal de reformados, que vem do Arquipélago dos Albatrozes. João e Maria vão visitar o filho mais velho, a nora e duas netas de dez e onze anos. Já não os vêem desde a última visita que eles lhes fizeram, há mais de dois anos, à, agora, sua pequena Ilha dos Perfumes, firmemente ancorada no meio do Atlântico, a Noroeste do arquipélago dos Albratrozes, entre as ilhas Quarta e S. Nicolau. Foi para lá que o casal se mudou, após longos anos de uma vida activa a fazer despertar meninos e meninas para o gosto das Ciências da Natureza um, e para o gosto pelas Artes Visuais, o outro. Visitaram-na um dia e apaixonaram-se pela sua pacatez e estilo de vida simples dos seus habitantes, quase auto-suficientes. A beleza natural também foi decisiva para a mudança. Era o que os seus corpos e mentes pediam para poder recuperar do stress inevitavelmente acumulado nas viagens diárias de automóvel em pára-arranca, entre Reluz e a Capital onde haviam vivido tantos anos. Era lá, na pequena ilha, que desejavam passar o resto dos seus dias, percorrendo carreiros ladeados de faias e loureiros perfumados. 

Enquanto Maria dormita com a cabeça abandonada no ombro de João, este puxa para mais perto de si o ecrã táctil que lhe estava destinado e começa a explorar as suas potencialidades. Accionando a pequena lupa de pesquisa, introduz a localidade que pretende conhecer: Noa Puma. Aparecem as fotos dos principais monumentos e sítios da cidade: a biblioteca, o ding dong, o centro de congressos, a ponte Te Rewa Rewa, o museu de arte, o monte Taranakiri, ainda com neve nas partes mais altas.

— Olha Maria, temos produtos alimentares da nossa terra em Noa Puma. Aparece aqui a Loja dos Albatrozes. Vou ver o que tem… Conservas, bacalhau, vinho do Porto e da Madeira. Havemos de lá passar quando chegarmos. 

Maria acena com a cabeça, sorri brevemente e volta a dormitar.

— Olha, tem também a escola primária dos Passarinhos: é a da Joana e da Isabel — continua João. — Vamos espreitar. Pedem-me um número de identificação. Acho que o nosso filho me enviou vários, por e-mail, antes do embarque. Na altura não percebi bem para que serviam.  Devo tê-los na carteira dos documentos. 

Encontra o número da Joana e insere-o, satisfazendo o pedido que lhe é feito pela máquina. O acesso à ficha pessoal, é rápido: nome completo, data de nascimento, entrada e saída e a sua Professora: Mrs. Aristide.

João escolhe ver online, seguido de enter

Vê-se a entrada da sala. Com o calçado num monte. Quase todos são chinelos de meter o dedo, porque é primavera e o tempo é ameno o ano inteiro. Destoa um par de sapatos de salto médio. São da professora, decerto. Na escola pratica-se a educação pelo exemplo. 

Aparece nas regras da escola: todos os alunos e professores têm a obrigatoriedade de retirar os sapatos e deixá-los à entrada para não sujar as salas. 

Outra regra: no final da aula, cada aluno coloca a sua cadeira em cima da mesa com o assento virado para baixo. Só então entrará ao serviço a única empregada da escola para limpar as quatro salas. No dia seguinte, cabe ao aluno voltar a colocar a sua cadeira no chão, para nela se sentar. 

Regra seguinte: Cada aluno mais velho, tem a função de tutorar um mais novo, ajudando-o em pequenas coisas que não consiga fazer sozinho. É uma componente da disciplina de cidadania. João vai continuando a pesquisa: 

Empregado da escola, enter.   Mr. Smith é o único em horário lectivo completo. É uma espécie de faz-tudo: desde tratar do jardim, dar um retoque numa parede que se sujou, fazer o curativo no joelho de um menino que se feriu, tratar da horta biológica e colher os legumes para a cozinha. Faz ainda de árbitro no jogo de futebol de meninos e meninas com Mrs. Aristide à baliza. 

Vista online da escola, enter. Vão almoçar. Regra associada: todos os alunos, qualquer que seja o seu extracto sócio económico, almoçam na cantina escolar. As refeições são equilibradas e não é permitido levar a refeição de casa. Pretende-se evitar o choque de classes refletido na qualidade e preço dos alimentos, bem como evitar o consumo de fastfood para reduzir a alta taxa de obesidade que o país tem no momento, em todas as faixas etárias, com a consequente sobrecarga nos recursos humanos e monetários dos serviços de saúde. 

São 17 horas locais. Hora de saída da escola. Controle de tráfego. 

Regra associada: dois alunos do último ano são escalados diariamente para a orientação do trânsito na movimentada estrada que passa junto à escola: devem deslocar-se a uma arrecadação onde é guardada uma estrutura metálica com um grande sinal de stop. Deve ser transportada para junto da passadeira onde os alunos vão atravessar e fixada no poste de iluminação. A estrutura é orientada para os automóveis e o sinal de stop obriga-os a parar. Quando todos os alunos tiverem passado é retirada e colocada de novo na arrecadação da escola. Este procedimento é feito a horas certas e sempre com a supervisão atenta de um agente da autoridade e de um professor, preferencialmente o Director. Pretende-se a sensibilização para comportamentos correctos enquanto peões e futuros condutores. 

Outra regra:  por decisão tomada em reunião, compete a um pai, ou a uma mãe, em cada dia e à vez, fazer o acompanhamento dos alunos que se deslocam em fila indiana, sendo sucessivamente entregues em suas casas, até ao último. 

 

As seis horas que faltavam para alcançar a Ilha dos Maoris do Norte passaram depressa.  Antes da aterragem, ouve-se a voz grave e solene do comandante a anunciar, com orgulho, que obtivera uma redução de tempo de voo de quinze minutos, devido às condições atmosféricas favoráveis, com pouca turbulência. Não é uma redução significativa para uma viagem tão longa, mas o mais importante é o número de litros de combustível que se poupam. 

O casal teve tempo para acompanhar online todo o dia escolar de suas netas. Após a aterragem na Ilha Maoris do Norte terão de fazer uma curta viagem a pé, através de uma rua pedonal, que os levará até à entrada de outro aeroporto mais pequeno, usado para voos domésticos. Tais aeroportos funcionam como um simples terminal rodoviário: não há alfândegas nem outros procedimentos burocráticos, o cartão de embarque é validado como se de um mero bilhete de metro se tratasse. As malas são encaminhadas para uma sala que dá directamente para a rua e ficam a girar na plataforma rolante até que o dono as levante. 

Toda a família lá os espera, para um longo abraço:

— Que crescidas! Que bonitas! 

Três gerações reunidas em Noa Puma, prontas e ansiosas por percorrer o país com um dos maiores índices de desenvolvimento humano do mundo. Quase não se vê polícia na rua e ninguém deita lixo para o chão. 

Para sua deslocação, é-lhes destinado um irrepreensível Datsun coupé de 1974, amarelo com tecto preto. Os seus sucessivos proprietários mantêm-no, graças a benefícios fiscais do Estado, concedidos para aumentar o tempo de vida útil de todos os automóveis, poupando recursos e protegendo o meio ambiente. Por isso lhe chamam o país dos clássicos. 

Quarenta e cinco dias e vários milhares de quilómetros depois, regressam a Noa Puma. A cidade já não é a mesma. Nos últimos dias a intolerância e extremismo de um desequilibrado, vindo do exterior, pôs fim à pacatez do país, com recurso a engenhos explosivos que matam e destroem. Vê-se mais polícia na cidade; os aeroportos para voos domésticos já não têm as portas abertas para a rua; os meninos já não podem assegurar a sua própria segurança no atravessamento das ruas; os pais já não podem, à vez, acompanhar os seus filhos no trajecto casa-escola, escola-casa sem a presença de um agente da autoridade fortemente armado; no recreio, já não se corre com entusiasmo atrás de uma bola, para marcar um golo na baliza de Mrs Aristide. A preocupação, agora, é estar-se atento a movimentos suspeitos por parte de pessoas que não se conheça. Está instalado o medo. 

João e Maria vão regressar à sua Ilha do Perfume, no Arquipélago dos Albatrozes. Fazem-no com o coração mais pequenino, conquanto, anteriormente, lhes tivessem dado motivos para que ficassem com um, eternamente, grande. 

Nota: por desejo do autor, este conto não segue o Acordo Ortográfico de 1990

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AUTOR(A)
José Mendes

José Mendes nasceu em V. N. de Famalicão. Vive, após reformar-se, em Vila do Conde. A sua formação é da área tecnológica. Passou por duas Escolas Industriais e pelo Instituto Industrial do Porto (hoje Instituto Superior de Engenharia) de onde foi arrancado antes de tempo, para ser actor no palco da guerra colonial. 

Desenvolveu a sua atividade profissional, de quase quarenta anos, na  Indústria Electrónica (área da Qualidade), só interrompida por uma curta passagem pelo ensino. Após conhecer e frequentar com entusiasmo o curso “Escrita em acção”, seguido do “Livro em acção”, publica o seu primeiro conto, na colectânea de contos “Que o caminho não nos fuja”. Participa regularmente na revista literária “Palavrar”. É membro do “Clube dos Writers Premium”, onde participa nas suas diversas actividades. Os “Retiros literários”, organizados por esta Comunidade, têm-lhe permitido colher novos ensinamentos e conhecer novas vozes que, como ele, vivem a escrita com gosto.

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