Que direitos posso reclamar para mim? Nenhuns. Sem família, ligações ou cidadania. Amigos, sim, mas nada de muito vinculativo e legal. O visto de residência que precisa de ser renovado. Nada que ligue. Nada que crie raízes.
E assim chegas. Tu que (provavelmente) também não tens qualquer direito a esta cidade, a este país. Vens com o olhar bem desperto, a saber nada. Chegas a este local que não te aceita inteiramente. Tu, o Outro. Sempre, o Outro. Sempre a ser colocado no lado de fora, a ser a constante presença no lado de fora. O constante questionar se sabe falar a língua de cá, se gosta da nossa comida, das nossas cidades. O questionar sobre de onde vens, ao que acabarás por eventualmente responder – depois de viveres cá há mais de uma década – “no fundo da rua” e todos se vão rir e dizer “não, a sério, de onde és realmente?”
O teu avião aterra num aeroporto, um local que não existe, uma passagem, onde ouves histórias em que acreditas sem questionar (como não?), porque até as histórias mais surreais soam a verdade, quando estás num país sobre o qual pouco sabes.
Desembarcas e tentas dar mais cor ao teu olhar. Entras no metro para chegares ao centro da cidade, porque é o centro deste novo mundo, o centro onde tens de chegar, esquecendo o nome da rua que seria o teu destino. Tudo é um labirinto confuso e a tua cabeça ainda está dentro de um avião a caminho de ti. Perdes-te nos corredores a caminho desse centro desconhecido e sentes a tua preocupação, a tua solidão, o Outro que és, e tentas encontrar o teu ritmo num novo espaço. Com a vida inteira guardada apenas em algumas malas, procuras o teu caminho por entre a multidão de novas caras, indo contra mulheres de salto alto, passando por homens de fato e olhando com atenção para as paredes cheias de anúncios numa língua tão distante da tua. E tu só sabes dizer “Obrigado”, aquela palavra que parece vir de outro mundo, mas que viajou quilómetros até ao país que deixaste para trás.
Na memória, ficam os primeiros momentos em que saíste do labirinto de corredores das estações de metro. Sais de debaixo da terra no Marquês de Pombal. Ênfase em pom, porque ainda não sabes falar português, ainda não sabes como dar a entoação certa às palavras. Olhas à tua volta. Tudo, mas mesmo tudo, é novo. Não vês, cheiras ou ouves algo familiar à tua volta. Ficam os carros de todas as formas. Os montes de cigarros pisados no meio do chão. Os posters rasgados nas paredes. Os bares e restaurantes cheios de gente. a forma como as luzes iluminavam a rua, dando à noite um brilho especial. As barbearias a fechar, os últimos varredores na rua, a pressa dos que querem chegar a casa, o grupo de pessoas a falarem, enquanto fumam um cigarro, e as várias lojas que se seguem umas atrás das outras.
Lembra-te de como o teu palato era diferente, quando chegaste. Como compreendias tão pouco de comida, tu, o Outro, o pagão que batizava cada prato de comida com o máximo de molho que conseguia. Como não sabias a diferença entre os vários tipos de peixe, como tinhas medo de experimentar algo que não conseguias pronunciar corretamente, como confundias os vários tipos de pratos de bacalhau que existem, como era inimaginável para ti comeres alguns queijos, por causa do seu aroma forte. Como vais demorar anos até conheceres o Polvo à Lagareiro e muitos mais anos até gostares de azeite, até perceberes a magia que é molhar o pão em azeite, até começares a exigir que coloquem bastante no teu peixe grelhado, peixe esse que já saberás dizer o nome… São precisos muitos anos para dares um novo instinto ao teu gosto por comida, para treinares o teu corpo a desejar estes sabores estrangeiros, sabores que se vão tornar, aos poucos, nativos, sabores estrangeiros para a tua boca e para o teu cérebro, uma boca e um cérebro que se vão reconstruindo para conseguirem navegar pelas belas nuances desta terra que se vai tornando cada vez menos estrangeira.
Quanto mais conheces, mais acumulas em ti – locais que, na realidade, são memórias, são dores, alegrias, tristezas e remendos, são recordações guardadas nos recantos desta cidade e aos quais não vais regressar. E assim, os nomes de alguns locais transformam-se, temporariamente, em campos de minas, enquanto outros te enchem coração. Com o passar do tempo, a grande maioria acaba por se tornar num local como tantos outros. Lembra-te das tuas primeiras noites de verão num quarto nada preparado para o calor que fazia, os mergulhos nas praias mais próximas, as noites na varanda a observar uma cidade em silêncio e os candeeiros a brilhar ao longe. Lembra-te dos monumentos, dos edifícios, das ruas. Destas outras casas, outras estações, outros cafés, outros restaurantes, outras caminhadas à noite, sempre a sentires-te de fora, sempre o Outro, a olhar para dentro.
E assim chegas. Tu, o Outro. Chegas a esta cidade onde não podes reivindicar nada para ti, chegas com a mente em branco, uma mente pronta para recomeçar, a achar que sabe muito pouco, quando, na realidade, não sabe nada. É melhor dessa forma, para não te iludires. Saboreia bem estes inícios, momentos que não se podem repetir, repletos de caos, que ficam impressos na mente de um novo visitante, desejoso, cheio de energia, facilmente impressionável. Estes instantes vão continuar cristalinos na tua memória muitos anos depois de teres chegado àquele aeroporto, depois de te teres perdido no metro, depois de teres ficado preso entre a multidão, depois de teres fugido ao labirinto das estações de metro e teres emergido no centro desta tua nova cidade, para, finalmente, dares os teus primeiros passos dentro dela.