Penduraste as divisórias num silêncio sem dor, baby. Fechaste a porta com a força dos naufrágios, mas eu sou mestre do silêncio, escrevendo névoa florida por ondas sem navios. Por aí nada. Afogava a tua cabeça num poema-canção como Desnos, num mapa de minudências, mas o momento não é tão grave assim. Espero-te na linha do horizonte, como sempre.
A fronteira de vidraça e persianas caídas impenetrável perante toda aquela orquestra retumbante de aves que entoava melodias, perto das palmeiras que espreguiçavam açúcar, memória granulada de uma infância com sabor a férias de verão. Ali dentro, nada para ser olhado pela tarde de inverno. Apenas a mão do homem fechando-se, agarrando a escuridão com as forças que ainda não tinha perdido. A outra mão inquebrável provava a harmonia entre as pontas do cigarro e da boca. O ar denso e melancólico dançava pela sala obscura. Lá fora, o pássaro entre notas musicais experimentava aterragens junto a uma moldura ajoelhada sobre dúvidas. Membro do coro vindo da colina da bravura, o passarinho roçava o campo das alturas gelado. O homem penetrou a fronteira, cigarro na boca, corpo balançado para território estrangeiro e, num gesto mecânico-veloz, o deslizar da janela transformou-se em estalido branco. O vento assobiou-lhe o cabelo e o pássaro, sem educação alguma, irrompeu:
- És brasileiro? — Novak sorriu perante aquela impossibilidade geográfica, devolveu a pergunta ao pássaro:
- És idiota?
Ele, ouvindo o pássaro que engoliu a fala e voltou para a vida doce junto das outras frases musicais, semeou tempestades no pensamento e caminhou seminu pela casa. Não era só o ar que dançava. Não. Novak abandonou-se, caiu leve no chão de madeira errática e fez-se noite abraçando sombras imaginárias, enquanto voava pelas nuvens desassossegadas dos sonhos. No céu de leite o sonho caminhava surdo perante as impossibilidades. Tal como a vida e a escrita, o sonho, numa incontrolável amálgama, saltava datas, esquecia freios e intrigava incoerências. Perdido naquele lugar onírico, podia ser ele. Novak buscava prazer para enganar a estranheza da vida. A memória e os desejos enroscados. A mão irrequieta acariciando o ouriço de pelúcia, que insistia em escapar, a outra segurando o peso incalculável das razões de Borges, o pé descalço no chão de gelo encontrava um animal, à frente tigre, no meio polvo, atrás macaco, o outro pé tomando a bola como mundo que rola, um ouroboro, o ouvido entortando-se em sinfonias de Baker, o outro perdido por um caminho difuso escorrendo palavras graves. Já não há sonho fora dos sonhos. Comandava, por dentro, a nitidez inconsciente do prazer às fatias. No centro do peito acordou a pedra quente que ainda ouvia o refulgir da fogueira de palavras, retalhadas por universos imensos. Após se quedar estátua, a resposta enfim pôs-se de pé. Nothing´s gonna hurt you, baby.