1.
— Ó Silva, e ele atravessou o mar a cavalo ou a nado?
— E vinha vestido com aqueles folhos todos como na pintura?
— Percebias alguma coisa do que ele dizia? Falava portunhol ou espanholês?
— E era mesmo uma manhã de nevoeiro, não era?
O tal Silva, sentado a olhar para a cerveja que esmorecia no copo sujo, era impermeável às perguntas que os outros lhe atiravam, em pé, de roda da sua mesa. Quando um deles, o Cabrita, tocou no ombro de Silva — não agarrou, não bateu, tocou apenas, talvez para perceber se sentia as respostas no capote coçado — ele afastou-se num salto, derramando a cerveja na mesa e no chão. Alguém assobiou, baixinho, como se percebesse, e depois sobrou apenas o som da bebida a pingar.
Silva voltou a sentar-se, sem esperar que a mesa fosse limpa, e falou baixo, mas firme:
— Não sei do que estão a falar.
Uns assentiram com a cabeça. O Cabrita não se conteve:
— Claro que sabes! O Rei, homem. O Rei que encontraste na praia.
Silva pôs a boina na cabeça e dirigiu-se para a porta.
— Isso… Tolices da bebedeira.
2.
— … sendo que o desaparecimento de el-rei Dom Sebastião na Batalha de Alcácer-Quibir deixou o país numa grande—
— Professora! O meu pai diz que ele apareceu em Tavira, no meio do areal e que—
— O meu diz que o Rei foi levado para o Tarrafal e que vai ser—
— Meninos!
— Não, o Salazar prendeu-o em Caxias e a PIDE está a arrancar-lhe as—
— O meu avô diz que ele só voltou porque o país precisa de—
— Meninos! Todos calados, i-me-di-a-ta-men-te!
— de ajuda. O País precisa de ajuda.
3.
Meus caros paroquianos, reservei para hoje um sermão diferente. Todos sabem os rumores que se têm infiltrado nas nossas casas, nas nossas famílias, rumores que abafam as rezas, rumores que chamam pelo pecado, rumores que cantam mais alto que a voz do Senhor.
Todos sabemos como o nosso país tem prosperado, como se mantém no rumo certo, e todos rezamos a Deus Nosso-Senhor para que continue a abençoar o ilustre projeto de uma nação exemplar. Agradecemos, noite e dia, pelo pão que temos na mesa e o teto que nos cobre as cabeças, a paz que nos abençoa, e por esta mesma casa, esta Igreja que nos acolhe e onde podemos orar em conjunto.
E agora vos peço que oreis para não serdes distraídos por falsos profetas, por histórias sussurradas que servem apenas para vos distrair do caminho que Deus reserva para todos vós. Orai para não serdes atraídos por esperanças rasteiras, orai para que o demónio não vos tente.
Pois o Salvador chegou, sim, chegou quando Jesus nasceu. E nunca vos esqueçais que já Ele morreu por nós.
Pai Nosso…
4.
24 de março de 1949
Foi descoberta a identidade do náufrago de Tavira
Foi revelada a identidade do homem encontrado na praia de Tavira na manhã de 13 de março. Trata-se de Sebastião Melo Faria, conhecido meliante, ladrão e assassino, a monte desde o final do ano transato. Aguardará julgamento na Prisão de Caxias.
5.
Caetano e Coimbra enfrentaram o chefe de forma distinta. Enquanto ouviam as ordens pormenorizadas, Caetano remexia no crucifixo de ouro que raramente saía de dentro da camisa e Coimbra mastigava as unhas, alternando a mão direita com a esquerda. Nenhum deles queria cumprir o que lhes era comandado. Precisavam apenas de escolher de que teriam mais medo: de o fazer ou de enfrentar os superiores.
— Com todo o respeito, Chefe, mas — tentou Caetano — não seria melhor aguardar mais um pouco e fazer as coisas com calma.
— Sim, chefe. — continuou Coimbra, depois de engolir a unha do polegar. — Com calma, chefe.
O chefe estava satisfeito. Satisfeito por ter conseguido escalar a hierarquia — sacrificando um pouco da sua dignidade a cada degrau que subia, mas era mesmo assim — e por ter a quem delegar aquela missão. O telefonema que recebera fora breve. Do outro lado, aquela voz que todos conheciam, que nem precisava de se identificar, e que lhe dissera apenas:
— Resolva isso.
Ele traçara um plano detalhado, o plano da “Resolução” do problema. Agora, só precisava que aqueles dois não o estragassem.
— Têm dois dias para fazê-lo.
— Chefe…
— Por favor…
— Dois dias.
6.
Eles fizeram-no, pois claro.
“Resolveram” o tal de Sebastião. Caetano rezava, Coimbra vomitava. Mas resolveram-no e acomodaram-no numa caixa, transportaram-na para um barco numa noite fria e navegaram para longe da costa, até não se ver terra.
— Fazemos aqui? — perguntou Caetano.
Coimbra assentiu. Agacharam-se para pegar na caixa e içaram-na borda fora.
Quando o mar a engoliu, o nevoeiro matinal abraçou-os.