O alquimista com cheiro a manjericão

   “O meu filho é um mágico”, disse-lhe a minha mãe. “Um mágico”, repeti pela incapacidade de encerrar a sensação daquelas palavras no meu corpo. Devem ter-me brilhado os olhos e as mãos suado. O sorriso, cheira-me, deve ter-se escancarado para me engolir o rosto. A minha mãe não é mulher de muitas falas mas, hoje, senti que tinha poupado as palavras toda a vida para dizer, do mais bonito modo, o que eu lhe era. Foi cautelosa e observadora o suficiente para cantar, em bom som, a melodia nesta leveza. Um mágico! A verdade com que o disse não me deu margem para duvidar. “Qual é o melhor truque?”, perguntou-lhe a velha peixeira da lota. A peixeira da lota é o mais parecido com uma amiga que a minha mãe resgatou desta vida. Ainda assim, nunca lhe falou de mim além destas frases: “A escola podia ir melhor…”, “É bom miúdo.”, “Está crescido!”. Não é coisa que me apoquente, são chavões a que as mães recorrem para não falar demais ou para não ficarem sem dizer coisa nenhuma. Daquelas frases que servem e a vida continua sem que uma mãe se comprometa em demasia para nenhum dos lados.

   A pergunta dos truques ficou sem resposta. Minha mãe limitou-se a sorrir e a entregar-me o saco que a velha peixeira da lota lhe estendeu, para que outras mãos o agarrassem. Entregou-mo com uma ternura especial e não ao despacha, como quem entrega um pertence para ser carregado. O mais natural seria que se usasse da minha potencial figura para o transporte de mercadoria. Afinal, não tardará a que me torne um homem másculo se, porventura, a realidade me fizer o favor ao sonho. Por ora, mantenho os pelos translúcidos no lugar da barba.

   Entregou-mo como quem entrega um presente, porque o era. Dentro do saco, um belo espécime. Tinha custado aquilo a que se chama os olhos da cara. Segurei o saco com toda a minha força. O Enrico das especiarias acenava, e eu, com o meu espécime dentro de um plástico azul e um sorriso cravado nas bochechas, levantei o braço, histérico de contentamento. “Pede ao Enrico tudo o que precisas para o teu truque”, disse-me a mãe. Não restavam dúvidas da magia de que ela me via capaz. Corri mais rápido do que a minha habilidade. A minha irresistível felicidade fez com que o Enrico juntasse aos pedidos fartos ramos de cebolinho e coentros, por sua própria conta. “Ouvi dizer que és mágico”, disse-me piscando o olho. Que maravilha de acontecimento! Não tardei a ter o mercado inteiro dentro do meu sorriso. O dia mais feliz da minha vida acabava de sair do plano da fantasmagoria.

   Lá em casa sobramos nós os dois, eu e a mãe. O meu pai não sei onde está. Diz a avó que no céu, mas a mim não me convence. Sei que morria do medo de alturas. Fiz por garantir que lhe guardava o segredo. Nunca gostamos que as mães saibam das nossas fragilidades, tenhamos nós a idade que tivermos. Todos continuam, por isso, certos de que o meu pai está no céu. E mesmo que já morto não possa morrer do medo de alturas, não me parece que lhe fosse dar para mudar de opinião sem que eu soubesse. Ainda estou para lhe descobrir o lugar do poiso, mas as saudades têm-me toldado a vista.

   Lembrei-me de que estávamos no dia do meu aniversário quando a avó me juntou um outro saco às mãos, mais pomposo que o da velha peixeira da lota. Tinha um laço, daqueles que só se usam no natal ou nos dias de anos. Uma jaleca e um bilhete. “Para o meu alquimista com cheiro a manjericão”. Tinha-a ela costurado. José. Chefe José. E uma folha de manjericão, o mais belo dos bordados na minha jaleca sonhada.

   Quando dos três ficámos dois, a minha mãe tornou-se ermita. No tempo em que o luto quer fazer mais mortos, todos os dias lhe levava o caldo ao seu ermitério. O caldo fervido das minudências que o faziam especial. O cuidado, a ternura, o afago. Todos os dias tentava encontrar uma receita que a salvasse, aprimorando o caldo. A minha felicidade resumia-se em ver a linha na tigela mais baixa do que no dia anterior. Adicionei-lhe umas tostas simples quando a linha atingiu o meio. Aperfeiçoei as tostas. Passei a medir a minha felicidade pelo número de dentadas. Descascava-lhe a fruta e transformava-a em flores, pássaros e corações. Se lhe entregasse a fruta descascada e tão bonita, em formas de esperança, talvez tivesse compaixão pelo meu esforço e a acolhesse no bucho triste. Passou a ver-se mais do que pele e osso: os efeitos dos caldos, da fruta de amor e das tostas com conduto.

 

   Beijei o meu nome na jaleca pela avó costurada. No mesmo instante senti um beijo na nuca. Uma espécie de beijos dentro de beijos, uma matrioska deles. “Salvaste-me a alma”, disse-me minha mãe. Avaliei o sorriso dela. Soube que o que fizera na cozinha, no tempo em que o luto esmaga, foram, no final de todas as contas, poções mágicas.

   “O meu filho é um mágico, há pratos que desabrocham a vida.”

   Chefe José. O alquimista com cheiro a manjericão da minha avó, o mágico da minha mãe.

   Descobri onde está o meu pai. Tenho em crer que, pelo medo das alturas, permaneceu ao meu lado. E o amor voou para o caldo, para a ponta dos meus dedos, para os meus truques. 

   Na minha jaleca sonhada há amor bordado.

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AUTOR(A)
Gabriela Pacheco
Gabriela Pacheco

Escritora, já premiada em concurso artístico na vertente literária. Colabora com plataformas digitais, tem e-book e é coautora em coletâneas. Ghostwriter, copywriter, formadora e gestora de desenvolvimento e formação com certificação internacional em Practitioner PNL – Programação Neurolinguística e graduação em direção hoteleira.

Formou-se em Ciências da Educação e da Formação e foi alimentando a sua curiosidade pelo universo. Só assim se escreve, quando nos alimentamos primeiro. É ter sempre o útero cheio, come-se por dois: para nós e para o escritor dentro de nós.

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