O ATAQUE Ao Sr. Dicionário - Alexandra Duarte

O ataque ao Sr. Dicionário

Vejam só o que aconteceu

A caminho do museu

Atacaram o Sr. Dicionário

Mas quem foi o salafrário?

Chamem já uma ambulância

Isto é de extrema importância

A velha senhora Lista Telefónica foi a primeira a chegar ao telefone. É verdade que já não tinha a agilidade de outros tempos, e que até já estava reformada, mas telefones era com ela. Ligou para o 112 e, minutos depois, os paramédicos chegaram ao local. Levaram o Sr. Dicionário na ambulância e correram para o hospital.

Abram alas, abram alas, temos um paciente amputado! Chamem já o senhor doutor, de seu nome Beija-flor, para tratar o acidentado.

Sem demoras chegou ele, um Manual de Medicina com 750 páginas e muitos anos de serviço.

— Ora então diga-me Sr. Dicionário, o que é que lhe aconteceu?

— Doutor, nem sei que lhe diga, estou sem palavras! — respondeu aflito.

— Tenha calma e explique como puder — continuou o médico.

— Não senhor Doutor, o que quero dizer é que estou mesmo sem palavras, especificamente entre o F e o G; passei de futebolista a gafanhoto, valha-me Santo Alfabeto, veja só as palavras que me roubaram, uma folha inteira! Fosse eu mais novo e tinha-me defendido, mas já estou velho. Imagine: eu ainda sou do tempo em que filosofia se escrevia com ph!

Oh desgraça desgraçada

Uma folha arrancada

Que coisa tão inquietante

Será preciso um transplante

— Procurem em todo o lado — disseram os médicos. — Bibliotecas, livrarias, alfarrabistas, quiosques… Precisamos de um dador!

Entretanto, chegaram ao hospital pilhas de livros — amigos, parentes e colegas de trabalho do Sr. Dicionário. Dirigiram-se à sala de espera e esperaram, pois era para isso que a sala servia. Esperaram notícias e partilharam preocupações.

— Ai, ai — disse alguém — ainda não acredito no que aconteceu! Estou tão aflito, angustiado, apoquentado, apreensivo. Diria até inquieto, preocupado…

Calou-se, de repente, quando sentiu os olhos dos outros livros postos nele.

— Desculpem, lamento, perdoem-me — disse a corar. — Não posso evitar, não consigo impedir, nem conter-me! — sou um dicionário de sinónimos!

— Aprendi tanto com ele — choramingou uma obra de ficção, um romance premiado. — Não seria o livro que sou sem as suas palavras.

Estava ali com a sua filha pequena, uma tabuada. Perante os olhares curiosos, a obra esclareceu:

— Sai ao pai, um livro de matemática.

Chegou logo a seguir um amigo de longa data, um livro de fotografia, onde estavam reunidas as melhores imagens do ano. Edição limitada, de capa dura e digno das estantes mais ilustres, trazia os dois filhos consigo, Pincelinho e Aguarela, dois pequenos livros de colorir com um par de lápis de cor colados na primeira página. Não paravam quietos e pintavam as costas um ao outro.

— Estejam sossegados, isto é um hospital! — ralhava o pai.

Tivera que levar as crianças consigo porque a mãe estava ausente — era um guia de viagens. Como se imagina, passava pouco tempo em casa.

No meio de tantas folhas,

Capas, abas e lombadas

Chegou também ao hospital

Uma das ex-namoradas

Um livro de culinária, de seu nome Dª Hilária, conhecera o Sr. Dicionário nos tempos de juventude. Consta até que ela lhe ensinara algumas palavras, de modo a enriquecer o vocabulário gastronómico. A sua especialidade eram as receitas tradicionais, das entradas às sobremesas, passando pelas sopas e pelos pratos de peixe e de carne. Ah! Sem esquecer os pratos vegetarianos!

— Valha-me Santa Colherada e Nossa Senhora das Receitas Escritas à Mão! O infeliz, não estamos seguros em lado nenhum! Lembro-me de algumas amigas a quem aconteceu o mesmo. Arrancavam-lhes as folhas porque queriam guardar as receitas! Custava muito escrevê-las? Se era tanta a preguiça de pegar numa folha e num lápis, como é que haviam de fazer molho de tomate caseiro, era mais fácil comprar enlatado, não era?

Entretanto, chegou também a polícia: o inspector Malagueta, um experiente livro de Crime e Investigação, e o agente Alforreca, acabado de sair da academia, era ainda um livrito de Novas Técnicas Policiais.

— Doutor, podemos falar com o paciente? — questionou o polícia. — Precisamos de esclarecer algumas questões.

— Muito bem, mas não demorem.

— Sr. Dicionário pode dizer-nos o que aconteceu? — interrogou o inspector.

— Resolvi sair da minha estante, Senhor Agente, para ir dar um passeio; pensara ir até ao museu, fica mesmo ao lado da biblioteca. Há tanto tempo que ninguém me consulta. Há prateleiras, veja lá, que é um «entra e sai» todos os dias: os policiais, os romances, os autores consagrados, todos sempre a vadiar. Eu estou obsoleto e não saio do mesmo sítio. Achei que não havia perigo, até evitei os bairros mais perigosos, como a secção dos livros de terror.

— E depois, conseguiu ver quem o atacou? — perguntou o agente novato Alforreca.

— Foi quando passei perto da secção da banda desenhada — a voz fraquejava ao Sr. Dicionário. — Nunca os tinha tomado por malfeitores.

— Pois sim. Já ouvimos falar no gangue da Banda Desenhada, passaram de miúdos traquinas a delinquentes. Uma tristeza. Iremos ao local onde ocorreu o delito e depois daremos notícias — terminou o inspector.

Se depressa o disseram, mais depressa o fizeram; Malagueta e Alforreca dirigiram-se à biblioteca para estudar a cena do crime, entrevistar testemunhas; enfim, para apanhar os vilões que andavam por ali a arrancar as folhas de livros alheios. Lá chegados, começaram a investigação.

Passaram pela secção de história

Onde todos têm boa memória

— As histórias que lhes posso contar, Senhores Agentes — dizia um livro de História de Portugal. — Nem queiram saber. Ora bem, tudo começou em 1143…

Os polícias olharam um para o outro e pensaram que, tão depressa, não sairiam dali.

— Não, desculpe — interrompeu o inspector. — O que queremos saber é se o senhor viu alguma coisa ontem, sobre o ataque ao Sr. Dicionário.

— Ah, pois, ora bem, se adoptarmos uma abordagem histórica, digamos assim, sobre a noite de ontem… não, não vi nada.

Desapontados, os polícias seguiram caminho.

Revelou-se uma grande asneira

Ir à secção de língua estrangeira

— Assim vai ser difícil, chefe — observou o Alforreca. — Tanta língua misturada, não conseguimos perceber nada.

— Tens razão — observou o inspector. — Não conseguimos arranjar testemunhas credíveis… Já sei! — continuou. — Vamos até à secção policial, tenho lá uns amigos, profissionais e amadores. São livros de detectives, polícias e afins, com quem trabalhei há vários anos.

Na secção policial

Foram muito bem recebidos

Resolviam enigmas e charadas

Sempre muito divertidos

— Então Malagueta, o que te traz por cá? — Um velho livro de detectives deu um abraço ao seu amigo.

— Olá, olá — respondeu o inspector. — Preciso de umas informações. Sabes alguma coisa sobre o ataque ao Dicionário?

— Ora bem, não é segredo, diz-se por aí que uns rebeldes da banda desenhada andam a aterrorizar algumas secções da biblioteca. Connosco não se metem, mas atacam os mais vulneráveis, livros de poesia, de auto-ajuda. Olha, tenta falar com as enciclopédias, são umas sabichonas e, entre todos os volumes, não há nada que não saibam.

De repente, ouvem gritar:

— Socorro, acudam! — Um livro infanto-juvenil repetia, apavorado. — Socorro, estão a atacar-nos!

Sem hora nem demora, Malagueta e Alforreca correram em direcção à secção de literatura para crianças. Em bom momento chegaram, pois as bandas desenhadas tentavam sequestrar um livro infantil!

Malagueta e Alforreca apanharam os malfeitores

Não passava, afinal, de um grupo de amadores

Foi o fim do gangue da banda desenhada

E fica, assim, a história acabada

Mas acaba a história como? Então e o Sr. Dicionário? Sobrevive, morre de vez ou fica para sempre desfolhado? Corramos até ao hospital para saber as novidades.

Oh céus, que alegria! Valha-nos São Papiro e Nossa Senhora das Folhas Impressas! Encontraram um dador! Um dicionário novato, por pouco sobrevivera a um incêndio. Ficara sem metade das folhas, não podia ser recuperado; no entanto, a folha entre futebolista e gafanhoto estava intacta e o dicionário desfalecido ficou muito feliz por doá-la e por saber que esta continuaria a viver no corpo do Sr. Dicionário. Como é bom ler um final feliz!

Quanto a mim, continuo

Na minha amada biblioteca

Fico empoleirado na estante

Depois desta história excitante

Faço rimas de noite, faço-as também de dia

Que mais posso eu fazer?

Sou um livro de poesia

A pedido da Autora, este texto não segue a grafia do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

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AUTOR(A)
Alexandra Maria Duarte

Nascida em Castelo Branco, rumou a Lisboa para estudar Línguas e Literaturas Modernas. Após a licenciatura fez uma pós-graduação em Tradução. Entre 2000 e 2001 participou na redacção e edição do livro «Ribatejo – Receituário Regional Tradicional», tendo também colaborado, ocasionalmente, com a revista «Cardápio – Saber Viver». A paixão pela escrita sempre se manteve, mas só em 2020 começa a frequentar cursos de escrita criativa. Vem a publicar o seu primeiro conto na colectânea «Não vão os lobos voltar», obra que chega ao público em 2021 e, no ano seguinte, apresenta o primeiro conto infantil na colectânea “Contos que contas tu”.

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