Mateus matou o grilo no dia do seu trigésimo aniversário.
Não era um grilo, na verdade, era um gafanhoto, mas era um chato do caralho.
Esse tipo de linguagem é impróprio e desnecessário
seria o que o grilo diria, se ainda tivesse a cabeça ligada ao corpo.
Enquanto era criança, Mateus suportara-o. Poderia dizer, até, que chegaram a ser amigos. Chegou a ser o seu único amigo, mesmo sendo um chato do caralho.
Linguagem.
Um tremendo chato.
Apesar de ter sido um rapaz propenso ao isolamento, nunca se sentiu sozinho e, mesmo que lhe custasse admitir, a companhia do grilo salvara-lhe a vida na adolescência.
Nada de bom virá de bateres com a cabeça no asfalto.
A morte, pensara Mateus, não seria a morte algo de bom?
Não, a morte é má. Acredita. É, talvez, das piores coisas que existem.
Mateus acreditara, porque o grilo não mentia. O grilo nunca iria contrariar um dos dez mandamentos, porque o grilo era honesto, correto, bondoso e um chato do—
Se queres conquistar uma donzela, deves tratá-la com respeito.
Durante anos, Mateus evitou dirigir a palavra a qualquer miúda, rapariga ou mulher por quem se pudesse sentir atraído. Tudo o que lhe ocorria dizer poderia ser considerado desrespeitador e o silêncio acabou por ser a solução mais simples.
Silêncio apenas quebrado pelo grilo.
Mesmo a forma como olhas para elas poderá ser considerada desrespeitosa.
E assim foi andando Mateus, sem falar ou olhar para mulheres.
A relação com os colegas não era mais simples.
O consumo excessivo de álcool tem diversos e definitivos efeitos nefastos.
O risco de acidente num carro conduzido por alguém que acaba de beber quatro whisky colas está acima de trinta e dois por cento.
Os alunos que passam no exame de anatomia estudam, em média, quarenta e duas horas e meia.
Olhando para o cadáver calado do grilo, Mateus tinha dificuldade em atribuir-lhe responsabilidade pelo seu sucesso na idade adulta. Nunca admitiria que o grilo o fizera suportar os gritos do pai, o choro da mãe, os vícios dos colegas, as tentações, a preguiça e a falta de vontade. A verdade, porém, era que o grilo o ajudara a chegar à universidade, a tirar o curso e a conseguir um emprego numa das mais conceituadas clínicas de Medicina Dentária.
Devo esclarecer que eu sou um gafanhoto da espécie Locusta migratoria.
Matou-o, finalmente, agarrando na cabeça com polegar e indicador, no corpo com a outra mão e puxando. A cabeça saltou e o grilo morreu.
Os gafanhotos migratórios passam parte da sua existência em África.
Pensou em enterrar o cadáver no vaso de uma das suculentas que tinha na sala, mas teve medo de que, dali a algumas semanas, o cato começasse a recitar excertos da parábola do bom samaritano.
Mas o samaritano viu o homem e ficou com pena dele, por isso cuidou de seus ferimentos e o vestiu. É isso a compaixão, Mateus.
Guardou-o num saco de plástico transparente e fitou-o durante largos minutos, desfrutando do silêncio. Deitou o saco na sanita e ficou a vê-lo boiar, tranquilo. Encostou o dedo ao botão do autoclismo e esperou.
As palavras que o grilo lhe diria, se ainda estivesse vivo, foram-se formando na sua cabeça, no mesmo tom professoral, com as consoantes raspadas e as vogais arrastadas.
Os plásticos nos oceanos matam cerca de
Mas Mateus não sabia a estatística correta. Nem sabia se o saco de plástico despejado sanita abaixo iria parar ao oceano. Não, talvez a lição fosse outra, mais sobre a vida e a morte e menos sobre ambientalismo.
Assassinar qualquer uma das criaturas de Deus
Era isso, sim. O grilo não apreciava homicídios, mesmo que fossem homicídios de insetos. Chamar-se-ia homicídio quando a vítima não era um homem?
A semântica é útil, Mateus, mas estás a divergir do tema principal.
Tirou o saco de dentro da sanita, passou-o por água d a torneira, secou-o e pousou-o na mesa da cozinha. Afagou o corpo do grilo, com o plástico de permeio, e foi pensando. Aquilo não teria acontecido se o grilo se tivesse mantido calado. Fora apenas um dente, um único dente arrancado a uma gestora bancária. Um dente com uma pequena cárie, sim, mas ainda em perfeito estado. Mateus fora influenciado pela mala Gucci, os sapatos CK e fez contas. Temos de arrancar este dente, disse-lhe, e colocar um implante. Poderemos fazer um preço especial. Ela acatou o valor sem mostrar qualquer incómodo. E o implante acabou por ficar impecável, melhor do que aquele dente já usado, diga-se. O grilo não se calara.
Durante dias e dias, a toda a hora, noite adentro, sem parar.
É um roubo, Mateus, aquilo que tu fizeste. E relembrar-te-ei todas as implicações éticas, ponto por ponto.
Mesmo durante os sonhos, o grilo aparecia para prosseguir a sua palestra, saltando incólume entre pesadelos e fantasias. Curiosamente, a frase que fizera Mateus perder, por fim, a paciência, pareceria inócua.
Acorda, Mateus. Hoje é o dia do teu aniversário. Como planeias tornar-te uma pessoa melhor?
E aí, Mateus arrancou a cabeça do grilo. Ali mesmo, na sua cama de lençóis amarrotados.
Deixou o saco de plástico em cima da mesa e preparou-se para sair. Tentava imaginar como seria essa sua nova vida.
Teria, agora, liberdade absoluta. Poderia convencer os seus pacientes, com tato e persuasão, a realizarem tratamentos um pouco mais invasivos do que o necessário. Um pouco mais caros.
Imaginava os números do saldo bancário a subirem animados. Fantasiava com um carro novo de mudanças automáticas e um apartamento mais próximo do centro.
Poderia voltar a frequentar bares. Teria toda uma nova desenvoltura para abordar mulheres, lançar-lhes olhares prolongados, sussurrar palavras impróprias, arriscar gestos arrojados.
Haveria de conseguir conquistar uma e levá-la para o seu novo apartamento, bem localizado e com estores elétricos.
E, acima de tudo, o silêncio.
Uma nova vida, sem barreiras. Uma nova vida onde poderia ouvir os seus próprios pensamentos, respeitar as suas pulsões, concretizá-las. Em silêncio.
Silêncio.
Falaria consigo próprio.
Num longo monólogo silencioso.
…
Sem interrupções.
Beberia o café de manhã. Em silêncio.
Silêncio absoluto.
…
Voltou atrás, tirou o corpo decapitado do grilo do saco, colocou-o ao ombro
Peço-te que não voltes a fazer aquilo.
e saiu de casa.