Autor(a):

Porventura Correia

O descanso do jornalista pé-de-cabra

Analisei os documentos da serpente verduga, passados secretamente para mim na cidade contrária de Bragança, Açnagarb. Pelo teor, seria funcionária bem colocada dentro do Ministério das Finanças, com acesso aos desmandos do ministro, um esquálido manta ao serviço de Gancha, a pretendente a rainha do Mundo Obscuro.

Depois de meses de confirmação e de aprofundamento do conteúdo dos papéis, consegui que o jornal publicasse uma reportagem de fundo sobre o tema. Não a insidiosa tentativa dos mantas tomarem o Parlamento da República, assunto que cairia no ridículo, mas apenas os desvios e desfalques económicos das criaturas que se faziam passar por humanos e tinham conseguido empoleirar-se nesses cargos. O artigo caiu na rua com estrondo. Houve cólera ministerial, ameaças anónimas, veladas e ásperas, e, por fim, outros periódicos filaram o anzol e também escavaram na lama.

Três semanas depois, a equipa superior do Ministério foi obrigada a demitir-se, ministro, secretários e assessores. Caso de polícia. No meu íntimo, sabia que o perigo manta estava posto de lado por algum tempo. Fosse qual fosse o plano real, ele estava seriamente amputado. É verdade que me perseguiam as últimas palavras da serpente verduga, ditas quando bebia os últimos golos da cerveja de musgo, Há mais segredos que possuo e que não posso partilhar, mas garanto-lhe que você tem uma missão importante neste jogo. Pelos vistos, sou peça de xadrez num tabuleiro invisível. Quem comanda esta brincadeira a que chamamos vida?

O trabalho jornalístico trouxe-me reconhecimento, fago do ego profissional e alguma proteção contra eventuais retaliações. A visibilidade salva. Assim, arredada a intriga dos mantas, resolvi dedicar-me a assuntos do coração e baixo-ventre, porque não confessá-lo? Havia a Anieska, moça roliça e aloirada, que fazia trabalhos independentes para vários jornais, assertiva e alegre, bem-humorada. Como resistir? Por mais do que uma vez, em reuniões, senti o peso dos seus olhos em mim, talvez… Primeiro, iria mirá-la com as lentes de escama de narval, para saber se seria humana ou um ser do Mundo Obscuro, depois, logo se veria que estradas e becos teria de percorrer para lhe aceder ao desejo.

Havia, no Mundo Obscuro defensores da pureza das raças, incluindo familiares meus, porém, eu não atribuía grande valor à questão. A pureza é o vácuo e, dentro dele, nada subsiste. Um pé-de-cabra e uma humana, havia mal? Desde que nunca revelasse a minha natureza, nem o desejo produzisse filhos com estranhas misturas genéticas. É alimentar a mentira? Sim, mas… Tudo está certo quando está certo. Sei lá.

Recostei-me no sofá, desfiz o feitiço de ilusão, pousei os cascos na banqueta e fumei o longo cachimbo de pau de oliveira contrária, a árvore arievilo. No dia seguinte poria em movimento a avizinhação a Anieska, a loira do sol-nascente.

Imagem Gerada Artificialmente e tratada digitalmente

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Porventura Correia
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