Um jornalista está habituado a fazer perguntas, mas às vezes encontramos quem nos conduz por diálogos esdrúxulos. É verdade que, quando me sentei no bar, não estava com a minha aparência humana, porque, como é de praxe, no Mundo Contrário os feitiços que iludem a aparência desvanecem-se. Cada um é aquilo que é. E eu sou apenas um pé-de-cabra, um fauno, para dar travo de erudição. Mas estava a contar….
Sentei-me ao balcão de um bar, em Açnagarb, a cidade no avesso de Bragança, onde fazia uma reportagem sobre enchidos de carne regionais. Sentou-se uma sujeita desconhecida a meu lado, uma serpente verduga. Umas das espécies que se mantêm neutrais em relação à guerra milenar entre a Velha das Fitas Vermelhas e a Gancha. Sempre que posso, desço ao Mundo Contrário para obter informações sobre os movimentos dos esquálidos mantas e dos seus senhores malignos.
– Sou como tu – afirmou peremptória.
– Como eu, como? Eu sou um pé-de-cabra.
– Nada disso, também tenho um feitiço de ilusão que me faz passar por humana. Sei quem és no outro mundo.
As lentes de escama de narval permitem ver a figura por trás do ludíbrio de um feitiço, mas não têm competência para fazer o contrário, que é olhar para um ser do mundo obscuro e adivinhar que figura humana pode ele ter. Assim, fiquei sem resposta… e sem saber muito bem quem era a criatura e o que me queria.
– Vamos dizer que trabalho num cargo do governo e já consegui identificar um manta ligado aos serviços secretos – prosseguiu, supondo uma relação de confidencialidade a que eu, como jornalista, me obrigava. – Tome, estes apontamentos ser-lhe-ão úteis, são fruto de três anos de olhares atentos. Também eu procuro proteger a República das figuras sinistras que manipulam nas sombras e que desejam o fim da humanidade.
– Os dois mundos podem coexistir – respondi, pouco convicto.
– Os dois mundos têm de existir em paralelo, porque se alimentam mutuamente. Nem toda a oposição é verdadeiramente oposta. Há mais segredos que possuo e que não posso partilhar, mas garanto-lhe que você tem uma missão importante neste jogo.
– Sou um mero jornalista.
– É o veículo da espada que cairá sobre a cabeça dos pantanosos mantas. Eles não podem ser revelados aos humanos, porém, o desvio e lavagem de dinheiros públicos operado a partir do ministro das finanças pode ser denunciado. Se bem provado, o próprio escândalo fará ruir o projeto.
– Não será para logo.
– O tempo é um bem precioso, mais do que pode imaginar. As serpentes verdugas podem sobreviver três centenas de anos, mais do triplo de um pé-de-cabra, e eu poderia ficar a assistir de bancada à luta insidiosa da Gancha contra a Velha das Fitas Vermelhas e os humanos, mas temo que o perigo seja grande demais para a indulgência… Acabe de beber essa cerveja de musgo e saia do Mundo Contrário, os meus olhos não são os únicos que o observam. Cuidado.