Em Portugal, temos o hábito muito entranhado de, em público, não chamarmos as coisas pelos seus nomes, não darmos os nomes devidos às coisas. Não darmos nome às queixas, às zangas, às conquistas, às dores, às derrotas, aos sentimentos, e sobretudo, sobretudo, não darmos a palavra ao sexo. Salvo raríssimas exceções, não a demos durante séculos na literatura. Até que chega o dia. Ou, como diria Bocage, um desses poucos que honrosamente quebraram a regra. Chegou por fim “o fornicário dia”.
Chegou com “O Escuro Que te Ilumina”, o regresso de José Riço à ficção, após 13 anos de silêncio.
Perfila-se, pois, riço e bem direitinho, o autor. Ele é um homem — evidência — corajoso, um escritor que os tem no sítio — uma evidência para quem acabar de ler estas 142 páginas.
Este é um romance pequeno, mais novela, talvez. É a fala confessional de um homem, sem nome, professor catedrático, que, à noite, espreita os vizinhos e se apaixona platonicamente por uma mulher, cujos gestos observa minuciosa e enlevadamente através de um telescópio apontado ao prédio da frente. Diz: “O trágico da paixão, a minha, é ter de a viver sozinho.”
Há quem assegure que as pessoas mais tristes e solitárias na intimidade são aquelas que mais fazem rir os outros em público. São o palhaço triste, mascarado, disfarçado de entertainer. Neste livro, solidão acaba por rimar com muita tesão. Exibicionismo também. Mas, sobretudo, com uma tesão melancólica, passada ao acto no bas-fond de Lisboa e arredores, em bares ou em terrenos baldios, onde se pratica glory holes e happy ends, chuvas douradas e butt plugs, figging, dogging ou carparking — se não sabem o que nada disto é, leiam o livro – rituais plurais, voyeuristas, sadomasoquistas, o que se quiser como expressão sexual livre.
O protagonista apresenta-se de batina preta, “desabotoada de alto a baixo: o hissope levantado na mão quando me aproximava dos grupos, dando-lhes uma mãozinha no que fosse preciso: fé, esperança e caridade:”, aspergindo-os por fim com um muito pós-moderno amor líquido.
Faz sexo com desconhecidos, serve-lhe “para tornar a realidade irreal: é esse o jogo, estar e não estar. O outro não existe como alguém, ainda não teve tempo para ser outro para quem o olha: é uma coisa, menos do que um corpo, é um sex toy que se mexe por si, sem precisar de pilhas.”
Sim, neste livro há carne, muita carne, senhores, e é servida crua. Nome a nome, gesto a gesto, está aqui o que (quase?) nunca esteve assim num romance português: sexo a nu, mostrado de forma amoral.
É verdade que Riço Direitinho o temperou com suficiente meta-ficção. O protagonista ensina literatura, é culto, cita Nietzsche, Al Berto, Klaus Knausgard — a quem, suspeito, se deve muito do impulso de auto-ficção deste livro —, Ângelo de Lima, Borges, Vergílio Ferreira, Kavafis, Rubem Fonseca ou Agustina Bessa Luís.
Mas diz, por exemplo: “Estou cada vez mais convencido de que uma das coisas que falta aos corpos docentes é foder.” E, depois, com a inteligência em riste, profusamente excitada por uma aluna, declama Bocage ou adapta Florbela Espanca:
“Foder, foder perdidamente!
Foder só por foder: aqui, além,
mais este e aquele e aquela,
o outro e a outra e toda a gente.
Foder, foder. E não foder ninguém!
É preciso cantar a Primavera em cada vida:
é preciso cantá-la assim florida,
pois se Deus nos deu caralho e cona foi para foder!
E se um dia teremos de ser pó, cinza e nada,
que sejam as nossas noites uma longa alvorada,
que nos saibamos perder para nos encontrarmos.”
Depois, há uma colega que ensina Filosofia Medieval e que ele encontra no “Mise-em-Scène”, um bar liberal e kinky ali para os lados do Parque Eduardo VIII. Também há uma juíza, torturada com sádica privação, e uma inspectora da PJ… Há naufrágios, inundações, fornicações e divagações várias.
Sim, neste livro há sexo, muito sexo. Todavia, o que motiva as incursões noturnas do protagonista é um caso de amor platónico. E repete, vezes e vezes: “Escrevo como se me lesses…” Diz que torna a sua vida mais devassa para não sentir tanto a falta dela, a vizinha da frente, tão distante e inacessível. É uma desculpa para não pôr o protagonista só a ter sexo. Mas nós aceitamo-la como engenho literário, não se pode querer ter tudo, assim, do dia para a noite. No final, foi tudo um sonho. Petrarca e Laura andam por aqui, e o primeiro diz: “Por vós convém que eu arda e em vós respire, que fui só vosso; e se de vós me privo, nenhuma outra desgraça é tal tormento.”
O sexo deve integrar a História, com H grande, e também a que o traz pequeno. O sexo deve integrar a Literatura. Sexo aberto e gráfico, mais ou menos literário. Mas: sexo. Porque muitos dos momentos mais intensos e felizes das nossas vidas estão ligados ao sexo. E já é hora da literatura portuguesa falar de nós e das nossas vidas.
Escrever sobre sexo implica tacto, muito tacto – não se riam, é verdade. É preciso medir o poder das palavras. Deixar entrar o material natural, sem filtros, direitinho, inteirinho, trabalhá-lo de uma forma nem decorosa, nem indecorosa.
A história não acaba nem bem nem mal, que é como acabam todas as histórias verdadeiras: há o amor consumado, um piercing no prepúcio, a inscrição definitiva da amada no corpo do protagonista, um dióspiro erótico e uma janela vazia.
“O sexo é a narrativa”, lê-se a poucas páginas do fim. Alguns dirão: Não havia necessidade. Mas havia, sim, e muita. Ora, ora, aqui o têm.
Apresentação de “O Escuro Que Te Ilumina”, 2018
© Filipa Melo
A pedido da Autora, este texto não segue a grafia do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.