O espelho

Pumba, catrapumba! Maria atirou a escova do cabelo para o chão. Deitou as mãos à cabeça e despenteou-se.

— Nunca vou ser uma bailarina de verdade! — disse,  olhando-se ao espelho que tinha no canto do quarto, de braços cruzados, língua de fora e franzido a testa.

— Vem cá! Vou mostrar-te o que não consegues ver.

— Quem está a falar? — Maria olhou em redor, desconfiada.

— Sou eu! Não me faças caretas!

— Estão a brincar comigo ou quê? És tu, Tomás? Sempre te achaste engraçadinho!

— O teu irmão foi para o treino de futebol. Sou eu, o espelho!

Maria esfregou os olhos e tentou pôr-se em pontas. Escorregou e, por momentos, ficou sentada no chão. Olhou na direção da voz e viu a sua imagem. Mas, seria mesmo ela? Rodopiava, cheia de corações à volta.

— Se falas mesmo, explica — disse, irritada. — Que eu saiba, um espelho mostra a nossa imagem. Não estou a dançar. Não vejo corações por aqui.

— Estão lá sempre, esses corações. Agarra-os.

— Não entendo nada!

Maria levantou-se do chão e começou a fazer uns pás de bourrée. Do outro lado, uma menina que não parecia ela começou a copiá-la.

— Espelho, ou lá o que és, porque é que essa menina me está a copiar?

— Não disseste que devia mostrar a tua imagem? És tu! É a bailarina que gostas de ser.

Intrigada, Maria abanou a cabeça e fez uma pirouette, mais outra e outra. A menina do espelho copiava-a. Continuavam a dançar em perfeita sincronia. Começou a ouvir-se uma música suave, que acompanhava a dança.

            Desta vez foi a menina do espelho a falar:

— Anda, Maria, entra!

— Cada vez entendo menos. Quem és tu? Entro? Por onde e para onde?

— Agarra a minha mão. O espelho deu autorização para vires.

— Ficou tudo em branco!

— Não te preocupes. É para saberes que podes escrever a história que quiseres.

Maria viu-se do outro lado, sem perceber bem como tinha ido lá parar. Mas nem se importava, pois estava demasiado deslumbrada. Luzes de várias cores brilhavam em redor da sala onde  estavam sentadas criaturas mágicas que nem conseguia descrever e, no meio, um palco redondo. Nele, a menina que vira no espelho estendia-lhe a mão. No chão, junto a ela, umas sapatilhas de cristal.

— São uma prenda do Reino da Dança para ti — disse a menina. — Quando as calçares, irás perceber como são mágicas e especiais.

— Do Reino da Dança? Isso existe? É lá, quer dizer, aqui… que estou?

— Sim.  Se nunca ouviste falar do Reino da Dança, fica a saber que existe e que é onde te encontras agora. Estamos tão felizes porque finalmente chegaste! Calça as sapatilhas, não tenhas receio.

Maria pensou que, se calhar, estava a sonhar. Pegou nas sapatilhas.  Não podiam ser mais reais. Calçou-as e, no meio do palco, não conseguiu conter um enorme impulso para dançar. A sua emoção e vontade de continuar aumentavam com cada passo, com cada movimento. Não era capaz de parar. De repente, sentiu-se elevada do chão. Era algo que não podia explicar, mas continuava a dançar no ar, com luzes de várias cores destacando os seus allegros e quaisquer outros passos que se aventurava a fazer. E, com a mesma leveza com que fora erguida, voltou ao chão, no meio dos aplausos das criaturas mágicas que se encontravam na sala.

Maravilhada com tudo o que estava a acontecer, fez uma vénia.

— Maria — disse a menina misteriosa —, continua a dançar com a paixão que nos mostraste. Tu és capaz!

— Gosto muito de estar aqui. Gosto do Reino da Dança. Sabes que não posso ficar, acho que deves compreender. Mas não vou sem que me digas quem és.

— Queres mesmo saber? Sou a parte de ti que ousa sonhar, a parte do teu reflexo que não querias ver e que encontraste hoje. Sei que tens de voltar, mas, antes, é preciso enfrentares um desafio.

Ao dizer isto, apareceu misteriosamente uma porta. Maria nem teve tempo de pensar bem no que acabara de ouvir, apenas sentiu um misto de apreensão e curiosidade. Ao mesmo tempo, estava preocupada, pois sabia que, em breve, seriam horas da sua aula de ballet. Que diria a mãe quando viesse chamá-la ao quarto e não a encontrasse? Fosse qual fosse o desafio, teria de o superar.

— Esta porta dá para um túnel — disse a menina misteriosa. — Para regressares, tens de o atravessar e confrontar as sombras do teu passado e as incertezas do teu futuro.

Afinal, seriam os seus medos mais profundos que Maria teria de enfrentar. Suspirou e abriu a porta. Viu-se diante de um corredor escuro. Nas paredes pareciam projetar-se momentos da sua vida, uns mais felizes, outros mais tristes. Desde os seus primeiros passos de dança, até situações em que duvidara de si mesma. Como quando, há pouco — pelo menos assim lhe parecia —, atirara a escova do cabelo ao chão. As sombras tentavam enfraquecê-la, mas ela resistiu.

Avançou, até chegar a uma  parte em que eram projetados desafios que ainda estavam para vir. Deixaria o medo apoderar-se dela? Pensou no que tinha acabado de viver, nos seus sonhos e, cheia de confiança, continuou em frente. Encontrou outra porta. Abriu-a. Do outro lado, lá estava a menina do espelho.

— Conseguiste, Maria! Estás pronta, nunca te esqueças de que és capaz. Estou aqui para ti. Olha-te no espelho e ver-me-ás. Ver-nos-ás!

Antes de poder dizer fosse o que fosse, Maria viu-se de novo no seu quarto. Nos pés, já não tinha as sapatilhas de cristal, mas sabia que a magia do Reino da Dança ficaria com ela para sempre.

Ainda meio a sonhar, ouviu a mãe:

— Estás pronta, Maria?

— Nunca estive tão pronta, mãezinha — respondeu, piscando o olho ao espelho.

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AUTOR(A)
Teresa Dangerfield

Teresa Dangerfield nasceu em Lisboa, em 1956. É Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas (Português e Inglês), pela Universidade Clássica de Lisboa e Mestre em Tradução, pela Universidade de Bristol (RU). Foi docente do Ensino de Português no Reino Unido, onde reside há mais de 30 anos.  Foi também Docente de Apoio Pedagógico na Coordenação do Ensino Português no Reino Unido. É tradutora e dedica-se à escrita, uma paixão que a acompanha desde a infância. Para além das publicações na revista Palavrar, tem contos e alguns poemas integrados em coletâneas.

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