Autor(a):

João Melo

O menino cego que sonhava com o arco-íris

Uyela nasceu com um problema estranho: não conseguia ver nada, mas era capaz de identificar o arco-íris, sempre que este surgisse no horizonte, magnífico, extraordinário e mágico. Ele punha-se então a pensar nas mil maneiras de pintar todas as coisas com aquelas sete cores deslumbrantes que – diz-se – todo o arco-íris encerra e espalha pelos céus da terra inteira, desde a pequena aldeia onde ele nascera e vivia até lugares que jamais conheceria, nem sabia se existiam ou não, mas algo dentro dele lhe murmurava que, sem qualquer dúvida, poderiam ser encontrados, caso fossem procurados com o espírito aberto.

Não duvidemos do poder das palavras e, sobretudo, não nos deixemos ludibriar pelos paradoxos ou trocadilhos que criamos com elas. A cegueira de Uyela era total, absoluta, irremediável. Manifestara-se desde o primeiro instante em que Uyela saíra das entranhas da sua mãe e lançou ao mundo o seu grito inicial, encarado, como é por todos habitual em tal circunstância, como uma simples prova de vida, mas que os mais sábios sabem ser uma declaração de princípios, identificando, através da apreciação das suas diferentes modulações, se o recém-nascido será um guerreiro ou alguém destinado a uma existência sombria e infeliz. Uyela, pela potência e as variações melódicas do seu primeiro grito, seria um guerreiro.

Os que assistiram ao seu nascimento observaram, entretanto, cessado o impacto do berro com que ele cumprimentara o mundo, que Uyela não movimentava os olhos, pelo contrário, mantinha-os fixos num ponto qualquer do quarto. Além disso, os seus dois olhos eram grandes e brancos e pareciam estar sempre abertos, mas era como se estivessem não só vazios, mas parados, quietos, totalmente inúteis. Quando repararam nesse perverso e inquietante detalhe, os presentes puseram-se a chamar o recém-nascido posicionando-se em pontos aleatórios do quarto, para ver se Uyela movimentava os olhos procurando a origem de cada som. Nada. Alguns aproximaram-se do menino e fizeram passear os seus dedos diante dos olhos dele, tentando descobrir se estes acompanhavam o movimento daqueles. O resultado foi, de igual modo, frustrante e perturbador. Outros resolveram lavar delicadamente os olhos do menino com água morna, fervida antes com várias e poderosas ervas, cujos nomes só eles conheciam. O efeito foi nulo. Uyela era, por conseguinte, cego.

Na aldeia onde o menino Uyela nascera, isso não era um problema. Todos os membros da comunidade sabiam, ao nascer, o que representavam palavras como empatia, solidariedade, entreajuda e outras tão generosas como essas, que os homens têm inventado – e, esperemos, continuarão a inventar – ao longo dos tempos para expressar e, ao mesmo tempo, desafiar o seu lado justo e bom. Para ser mais preciso e rigoroso, nenhum deles perguntava, quando nascia, o que significavam tais palavras: estas já os aguardavam, amorosas, no ambiente geral constituído pela comunidade e a natureza; portanto, viver com elas e, mais do que isso, praticá-las até que cada um partisse deste mundo e se transformasse em espírito era como respirar, comer ou amar, pelo que ninguém tinha necessidade de vangloriar-se e, pior ainda, procurar tirar disso qualquer vantagem, legítima ou espúria.

Todos já sabiam o que fazer, portanto, quando constataram que o menino Uyela era cego. As mulheres ofereceram-se para ajudar a mãe dele a preparar com o máximo de cuidado e desvelo a casa onde ele viveria, arrumando de modo adequado os parcos móveis e demais utensílios, para que, dentro dela, houvesse caminhos bastantes e seguros para Uyela se movimentar sem quaisquer constrangimentos. Os homens decidiram partilhar, todos os dias, o resultado das suas caçadas com o pai do menino, pois o mesmo teria de ficar um longo e indeterminado período sem sair para caçar, a fim de, juntamente com a esposa, auxiliar Uyela não só a identificar os caminhos internos da casa, mas também a, quando necessário, sair à vontade pelos carreiros da aldeia, ir até à beira do rio, apreciar o perfume das montanhas distantes, ouvir o canto dos pássaros e aprender a comunicar-se com eles. Ele era o primeiro filho dos seus pais e, portanto, não tinha irmãos. As outras crianças da aldeia resolveram, assim, passar a visitá-lo todos os dias, sem se esquecerem um dia sequer, a fim de brincar com ele e ajudá-lo a descobrir o mundo. Uyela nunca soube, portanto, o que significava ser cego.

Um dia, um facto extraordinário aconteceu. Uyela estava com a mãe na beira do rio, onde ela costumava lavar a roupa regularmente. Tinha acabado de chover e o sol começava a irromper atrás das montanhas, ocupando todo o céu, que de novo se ia tornando azul. De repente, o menino começou a gritar, a saltar de felicidade, a rir como se fosse a primeira vez que via o mundo e todas as suas coisas, formas e cores. A mãe, que estava de cócoras esfregando umas peças de roupa sobre umas pedras polidas pela água durante séculos ou milénios, talvez, olhou para trás e, ao mesmo tempo, deu um salto até onde estava Uyela, tremendo, apontando para o céu e rindo de felicidade. Teriam os espíritos furtado, vil e sub-repticiamente, o juízo do seu único filho, o que nascera com os olhos furados? Que mal teria ela feito para que fosse castigada dessa maneira?

O seu espanto tinha plena razão de ser. Uyela tinha visto pela primeira vez o arco-íris. Ele nascia lá longe, no fundo do céu, para onde ele apontava como que extasiado; subia, depois, riscando o céu como no poema de Viriato; e, por fim, descia, fazendo uma curva que completava uma abóbada perfeita. A mãe do menino Uyela pensou que ia desmaiar. Quando o filho nomeou, sem cometer nenhum lapso, as sete cores deslumbrantes do arco-íris, ergueu-o e apertou-o contra o peito com toda a força que tinha. Começou a chorar convulsivamente, enquanto corria para a aldeia, com Uyela nos braços, para dar a boa nova.

Aquele caso era muito estranho. Com efeito, Uyela tinha visto o arco-íris (ninguém o duvidava, pela descrição perfeita que o mesmo fizera, quer da forma quer da composição cromática desse fenómeno; aliás, a estação era propícia ao surgimento de arcos-íris…), mas continuava cego, como se havia comprovado depois da sua mãe ter contado a toda a aldeia o sucedido. Os olhos dele continuavam parados, como se não existissem. Eram, pois, tão inúteis como mostraram ser, sem qualquer disfarce, no dia em que o menino nascera.

Foram requisitados os feiticeiros da aldeia para determinar o que estava a acontecer. Eles reuniram-se durante um mês, quatro vezes mais, exatamente, do que o tempo habitual para analisar casos de poderes excecionais, o que, segundo eles, era explicável pelo facto de os poderes de Uyela não serem apenas excecionais: eram desconhecidos. Toda a sabedoria e todo o tempo, portanto, seriam imprescindíveis, para poder esclarecer aquela maka. O menino, obrigado a permanecer com os feiticeiros durante todo o tempo em que o seu caso esteve em investigação, foi sujeito a exames e tratamentos que não podem ser descritos, pois pertencem a uma ordem de conhecimento exclusiva. Foram também necessárias horas e horas de discussões entre os feiticeiros, sem a presença de qualquer estranho. Os pais do menino Uyela tiveram de permanecer fechados e isolados em casa, durante um mês, sem quaisquer contactos com os restantes membros da aldeia.

Um mês depois, os feiticeiros convocaram os pais de Uyela e toda a aldeia. O seu porta-voz limitou-se a dizer:

— Não há problema nenhum!

Aquilo nunca se tinha visto. Os pais do menino Uyela entreolharam-se, sem compreender. Os restantes membros da aldeia começaram a murmurar, cada vez mais alto, mas ninguém percebia o que diziam. As crianças desataram a rir descoordenadamente. Indiferentes a toda a confusão, os feiticeiros foram-se embora, com ar sério e grave.

Desde esse dia, Uyela começou, todas as noites, quando todos já se haviam recolhido, a fazer perguntas inexplicáveis aos seus pais. Das setes cores do arco-íris, qual seria a mais bela? A mais extravagante? A mais importante? A mais poderosa? A mais valiosa? Os pais não sabiam o que lhe responder. Limitavam-se a olhar um para o outro, com o coração cada vez mais triste e pesado, sempre que o filho lhes fazia aquelas perguntas, que na verdade eles, que sempre tinham visto arco-íris desde que haviam nascido, consideravam desnecessárias.

Na aldeia, ninguém sabia — nem era aconselhável saber — o teor das conversas que Uyela tinha com os seus pais, todas as noites, sobre as cores do arco-íris. A vida prosseguiu, pois, na sua costumeira e aparente normalidade. O mistério do menino cego que era capaz de ver o arco-íris deixou de sê-lo, convertendo-se num facto corriqueiro, como o dia que se sucedia à noite ou ao sol que sempre aparecia após a chuva. Ninguém mais o mencionou.

Uma noite, Uyela teve um pesadelo, acordando aos berros e completamente desfeito em lágrimas. As sete cores do arco-íris tinham entrado em guerra umas com as outras. Foi o que ele disse aos pais, que tinham acorrido à esteira onde ele dormia, em pânico por causa do choro do filho.

— Cada uma delas queria ser a mais bela, a mais poderosa, a mais importante e, por isso, começaram a pelejar de maneira violenta e brutal! — acrescentou Uyela. —

No início, algumas delas mantiveram-se em silêncio, preferindo ficar à parte, mas acabaram envolvidas na discussão. A discussão transformou-se numa série de acusações mútuas, cada vez mais incompreensíveis. Eu só lograva entender palavras soltas, como “branco”, “preto”, “azul”, “cor-de-rosa”, “escuro”, “claro”, “supremacismo”, “identidade”, “autenticidade”, mas não cheguei a entender por que motivo estavam elas a discutir e a destruir-se umas às outras. Até que o arco-íris começou a desaparecer, a desaparecer, a desaparecer…

Perante o ar atónito dos pais, Uyela desabou. Jogando-se no colo da mãe, disse:

— Mamã! Papá! O arco-íris morreu… O arco-íris morreu… Eu não consigo mais ver o arco-íris!…

Os pais de Uyela perguntavam-se que filho era quele que os espíritos lhes haviam enviado. Pergunta injusta, essa. Cabe-nos a nós perdoá-los, pois eles, ao contrário dos feiticeiros da aldeia, não eram sábios.

Uyela acrescentou, mais enigmaticamente ainda:

— Pensando bem, é melhor assim! O mundo, se desprovido da sua multiplicidade cromática, talvez seja mais justo… sejamos todos, portanto, translúcidos! Se o formos, não teremos mais, estou certo disso, motivos para nos guerrearmos uns aos outros. O pecado original da humanidade será resolvido de maneira radical e exemplar, pois os homens deixarão de ser diferenciados por causa da sua cor e, assim, também não precisarão de se autodiferenciar pela mesma razão…

Os pais dele exclamaram:

— O nosso filho quer ser cego de verdade!…

Lembraram-se ambos das palavras que o porta-voz dos feiticeiros não tinha chegado a dizer, por considerá-las desnecessárias. Eram palavras breves, suscetíveis, talvez, de ser consideradas insuportáveis, mas de uma profundidade que calou fundo no coração do menino:

— Um mundo translúcido não é necessariamente um mundo mais humano. A transparência absoluta pode ser obscena, suja e fraturante. Assim como a diversidade não depende da igualdade, é seu fator, a igualdade não é apenas coexistência nos mesmos termos: carece de convivência, ou seja, vida em comum. As cores que compõem o arco-íris não se confundem, mas também não se hierarquizam e muito menos apartam. Na realidade, podem assumir de forma livre e voluntária várias tonalidades. O modo como apreciamos essas tonalidades depende do olhar de cada um e, sobretudo, do pulsar do seu coração.

Uyela agradeceu aquelas palavras sábias, que lhe foram transmitidas pelos pais.

— Amanhã, cego ou não, verei outra vez o mundo e todas as suas cores! — disse.

O menino cego que sonhava com o arco iris - joao melo
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AUTOR(A)
João Melo

João Melo nasceu em 1955 em Luanda, onde mora. É escritor, jornalista, publicitário, professor universitário e consultor. Membro fundador da União de Escritores Angolanos, de que foi secretário-geral e presidente. Membro fundador da Academia Angolana de Letras.

Foi deputado e ministro. Como escritor, tem-se dedicado ao conto, crónica, poesia e ensaio. Publicado em Angola, Portugal, Brasil, Itália e Cuba. Tem textos traduzidos para inglês, francês, alemão, húngaro, árabe e mandarim. Está representado em várias antologias de poesia e de contos, em Angola e no estrangeiro. Em 2009 recebeu o Grande Prémio de Cultura e Artes, categoria de literatura, pelo conjunto da sua obra.

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