deve andar por aí
Um dia, o avô despareceu. Não se despediu de mim nem de ninguém.
Nunca mais veio a minha casa. Nunca mais fez caminhadas matinais. Nunca mais me recebeu no seu portão, de braços abertos e com um estás cada vez mais crescido, rapaz, enquanto me despenteava com uma das mãos.
Na casa do meu avô, agora, moram outras pessoas, as janelas já não têm cortinas de renda e as sardinheiras dos alegretes secaram.
Sei que adora passear, devagar, a assobiar baixinho e a olhar para os barcos no rio, mas não me ocorre onde possa ter ido.
Talvez tenha decidido partir num dos navios que por aqui passam, daqueles grandes que vão diminuindo de tamanho, até serem um simples ponto que se esvanece no horizonte.
Talvez se tenha perdido na melodia do seu assobio ou ido atrás de um sonho de menino.
No entanto, não acredito nisso.
Há uns dias, quando pedalava numa subida muito ingreme, pareceu-me que o meu avô estava ali, a dizer força, rapaz. Era assim que costumava fazer, quando me ensinou a andar de bicicleta.
Esta semana, tropecei na calçada da minha rua e esfolei um braço. Estava a começar a choramingar, mas depois quase senti um beijinho do meu avô, mesmo em cima da ferida. Era o que fazia, quando eu me magoava, para a dor passar num instante.
Ainda hoje, estava sem coragem de convidar a Maria para brincar, quando tive a sensação de ouvir a voz do meu avô a dizer-me tu consegues. Era desta maneira que ele me encorajava quando me sentia envergonhado.
Por isso, desconfio que o meu avô deve andar por aí, bem perto de mim.
Aposto que está refastelado na sua poltrona castanha, com um olho no jornal e outro em mim, bem no centro do meu coração.