A vida de jornalista é limpa? Sorrio-me. Conto esta: era dia de corrida para cumprir peça jornalística e tudo correu mal. Carro avariado em nenhures, nas redondezas de Évora, telemóvel sem rede, entrevista perdida com político nacional. No caminho rematado por sebes de pedra solta, perante os meus impropérios, assomou um moirinho dos muros, homenzinho pela altura do joelho, grandes olhos verdes e cabelo vermelho.
O moirinho é ser afável e, tratado com respeito, em dobro nos paga. Contei-lhe a desgraça e ele, apiedado, revelou precioso segredo, o lugar onde habitava prestigiado oniromante, mestre de entrar nos sonhos e, através deles, saber passado, presente e futuro. De que me valia a ciência dos sonhos? O moirinho riu-se, bamboleou muro abaixo, puxou-me as calças e silabou que sonho de político valia mais do que entrevista, operado por erudito do onírico. No meu bloco de papel, desenhou caminhos até ao pelourinho de Azaruja, onde estaria um velho barbudo sentado e que, mediante a senha dada, me conduziria ao refúgio do oniromante.
Socorrido o carro, acelerei para Azaruja e reconheci o ancião, que me levou a uma habitação descascada. Surpreendi-me com o oniromante, a quem atribui trinta anos, mas com o obscuro é incerto o que os olhos veem, até poderia ter trezentos ou mil. Breves apresentações. Contei os meus intentos e ele esclareceu os seus limites: era oniromante-leitor, intérprete de sonhos e sentidos, e não um oniromante-manipulador, dos que moldam os sonhos a seu critério; e, muito menos, um oniromante mão-de-ferro, dos quais há uma dúzia espalhada pelo mundo.
Relatou-me ter convivido com um mão-de-ferro na juventude, séculos atrás, um tal de Maguélio, consorciado com a Rapariga das Fitas Brancas. O mais poderoso oniromante do continente. Contudo, o mestre partiu para um sonho e desapareceu. Que sonho era esse? Há especulações no mundo do obscuro, nenhuma concludente. O meu anfitrião tinha opinião, lacónico, anunciou que só o ferro bate o ferro. Um dia, detalharei as minhas pesquisas sobre o caso, por ora, fiquemo-nos por este oniromante-leitor.
No que me interessava, aceitou o desafio de entrar no sonho do político e sacar informações para a minha reportagem. Desapareceu diante os meus olhos, como a ondulação húmida no ar de estio. Passaram quartos de hora, meias horas e, depois, horas; entrou a madrugada com os seus cascos de cordeiro e, por fim, regressou.
As mãos, pretas, ensanguentadas, fumegantes, seguravam uma caixa de madeira, onde o meu perdido entrevistado protegia, na sua mente, os segredos. Corrupção, favores, desvios, imoralidades, ambições e atropelos. O oniromante pagara caro o retirar algo do sonho, tarefa excessiva para mero leitor. Pude digitar num ápice a reportagem estrepitosa e o meu coração ficou-lhe para sempre devedor.