O outro aflito - Gabriela Pacheco

O outro aflito

— Sonhei que o morto tinha sonhado, que por esta hora estaria aflito por conta disso.  Vim inteirar-me.

— Dá provas de que é mais ridículo do que a morte. E nem me refiro às cuecas.

— Talvez. Mas note no que me deu a preocupação, aqui estou. Assim mesmo, sem mais.

— É a natureza da sua preocupação que é descabida e não a sua ação sobre ela.

— Estou a ver… O seu é dos intelectuais… Ou então, o da terra, é o humilde que pariu o intelectual. Tenho cá muito disso.

— O meu quê?! Já lhe ocorreu deixar entrar em si algum juízo esta noite?!

— Morto, o seu morto. Só cá aparece quem tem um hospedado. A quem mais me referiria?

— E você é quem?

— O que lhes cuida do sono. Que outro se levantaria a meio da noite para extrapor porta fora, em cuecas, saber do sonho afligido?

— Esperei encontrar de tudo no lugar onde a morte assenta, menos um descabido em roupas íntimas. Que absurdo de momento, pouco digno até, não lhe parece? Haverá de comigo concordar, é no que me resta crer. Se a esperança tem serventia é para momentos destes.

— Era homem para me sentar aqui mais as minhas cuecas, o termo roupa íntima não as enobrece, a debater a dignidade consigo. 

— Tenha juízo!

— Crê que me falta? 

— Não o denuncio, saiba, por não vivermos tempos de facilidade no que concerne à contratação de coveiros. Não fosse a falta de mão de obra e amanhã, pela fresca, o seu superior tinha notícias minhas.

— Que lhe diria? Que o coveiro se passeia de vestes escandalosas, ou com falta delas, por entre os eternamente adormecidos?

— Não considera assunto para se levar às altas instâncias? Ainda gostava de o ver justificar-se.

— Então veja. Levantou-se aqui um vento, ontem, de fazer voar a morte solitária. Fazia um frio capaz de gelar os lagos, de me transformar em geada. Descascou-me as árvores, o vento. Tinham todas folhas daquelas que estavam presas pelo amor à vida, a força já não era muita, era só preciso virem sopros fortes. E vieram. As flores por aí deixadas nestas compridas campas, por amor, cortesia ou obrigação misturaram-se no ar. O senhor dá ares de quem lhe chamaria um florists team building ou uma fusão de tendências da arte floral, da maneira como todas se tornaram uma só coroa pelo bailado nesses ares. Escusa de arregalar a vista, também leio o jornal e outras cousas mais, estou a par da linguagem moderna. Gosto de saber de que mundo são os que aqui se enterram e aqueles que os espreitam pelo seu próprio andar, escusado será acanhar-se comigo. Mas todo o vento assenta, mesmo depois de me ter desfeito uma ou outra pedra, um ou outro trabalho de arrumos. Saiba, o morto que se deita neste lugar não beneficiou da direção do vento. O espetáculo floral em remoinho abateu-se todo por cima dele. Esta árvore que lhe faz sombra no quente do verão, e olhe que aqui o verão sufoca de queimor, deixou ceder uma pernada, no lugar onde, pela lógica, deve estar a cabeça do falecido que vem visitar. Uma senhora pernada, digo-lhe. Fazia uma árvore daquelas além. Precisei de ir buscar a serra, a única que cá tenho, que é de meus pertences e que só funciona com a força dos braços. Levei todo o dia tentando desfazê-la em três bocados, para arrastar a pernada daqui para fora. Tinha um morto encarcerado, submerso, abalroado naquilo a que chamam “descanso eterno”. Trabalhei o mais rápido que consegui para o aliviar do peso. Quatro carrinhos de entulho levei deste canto. Lavei as roupas ali no tanque com as mãos doloridas da serra. Esfreguei os toucinhos colados à pele que me constitui e deitei-me de cuecas. Dormi o quanto bastasse até vir o sonho dando-me conta do sonho aflito do morto que aqui dorme. Sabe, há traumas que ficam no subconsciente e nos espreitam na dormida. O tronco tinha peso para magoar um morto, não tenho dúvidas porque fui eu quem o carregou. Só cá estava eu mais ele. Aliás, com ele só cá tenho estado eu. Se eu não lhe viesse acudir, quem viria? Muito me espanta encontrar visita depois destes anos em que temos sido só nós dois. É natural que me arrelie, que me levante do quente conforme estou para vir ver se está tudo na normalidade, para lhe dar duas ou três palavras de aconchego e o descansar, que se o vento se levantar outra vez, outra vez lhe limparei a campa. Se a alta instância ainda assim me sancionar, eu digo-lhe onde guardo a serra e como se usa o tanque.

— Meu pai. O morto aflito. Outro dia volto.

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AUTOR(A)
Gabriela Pacheco
Gabriela Pacheco

Escritora, já premiada em concurso artístico na vertente literária. Colabora com plataformas digitais, tem e-book e é coautora em coletâneas. Ghostwriter, copywriter, formadora e gestora de desenvolvimento e formação com certificação internacional em Practitioner PNL – Programação Neurolinguística e graduação em direção hoteleira.

Formou-se em Ciências da Educação e da Formação e foi alimentando a sua curiosidade pelo universo. Só assim se escreve, quando nos alimentamos primeiro. É ter sempre o útero cheio, come-se por dois: para nós e para o escritor dentro de nós.

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