João encostou o carro na berma. Fincou as mãos no volante para controlar a vontade de desistir. Faltavam cerca de três quilómetros para chegar à aldeia e as suas inseguranças assolaram-no como um relâmpago perdido no verão. Questionou a escolha do lugar, recriminou-se por ter pedido a licença no trabalho e revoltou-se por sonhar na meia-idade: com a reforma no horizonte, queria ser feliz entre as palavras.
Quando chegou à aldeia, João rendeu-se à beleza rústica do aglomerado de casinhas castanhas viradas para a praça, onde os bancos de pedra recebiam a sombra dos plátanos centenários. Inspirou o aroma de mil flores escondidas nos quintais. O seu olhar vagueou ao compasso da brisa e as suas dúvidas dispersaram-se nas colinas frondosas que aureolavam o lugarejo. Esqueceu os corredores pálidos da universidade onde lecionava História da Literatura. Era um apaixonado pelo seu trabalho, mas chegara a altura de se despedir dos relatórios, ensaios e exames. Bastava-lhe a recordação das vidas que tocara e dos futuros que ajudara a desenhar. Quando regressava ao apartamento silencioso, o medo apoderava-se dele. Esquecera a sua devoção pela escrita. No entanto, os anos de convivência com a voz dos outros levaram-no a decidir replantar as suas próprias palavras.
Um cão ladrou e João despertou do devaneio. Reparou na casa de pedra com a tabuleta “Casa Ti Joaquina”. Dirigiu-se à senhora sentada à porta.
— Boa tarde! Dona Alzira?
— Boas tardes. Reconheci-o pela voz, doutor João — levantou-se e cumprimentou-o.— Estava à sua espera para lhe entregar as chaves. Vamos lá ver se é do seu agrado.
João seguiu-a. A casa estava bem estimada e cheirava a sabão azul. Sentiu-se confortável. A Dona Alzira virou-se para ele:
— Somos vizinhos. A minha mãe deixou-me esta casa. Há uns anos, a minha filha decidiu restaurá-la. Ela vive com o marido e o filho na cidade, mas vêm cá amiúde. — Fez-lhe sinal para ir às traseiras e abriu a porta que dava para o quintal. — Se precisar é só chamar. — Aproximou-se da cancela na vedação que separava os quintais. Abriu-a e passou para o outro lado. — Não vou maçá-lo mais. Até logo.
João agradeceu e despediu-se. Aproveitou para analisar o quintal. Os canteiros floridos aromatizavam aquele pedaço de terra. Por momentos sentiu-se diferente. Já não pesava a solidão. Não tinha filhos e o único sobrinho vivia na Austrália. Contava apenas consigo e com amigos que fez ao longo da vida. Esfregou as mãos para afastar algum laivo de tristeza. Era tempo de começar a semear!
No dia seguinte, João passeou pela aldeia. Leu o jornal no café, enquanto saboreava uma cevada preparada no pote, acompanhada por fatias de pão doce. Alguns olhares de esguelha fizeram-no sorrir e acenar com a cabeça. Pouco depois, já ninguém estranhava a sua presença e até lhe pediam opinião sobre o jogo de futebol do último domingo.
Aos poucos, João habituou-se à simplicidade do tempo naquele lugar: o galo despertava-o; os trilhos, por entre giestas e silvas, estimulavam-lhe as sensações e as conversas na praça tornavam-se em ideias que fervilhavam na sua alma. No quintal, as folhas do caderno enchiam-se de fragmentos de memórias e de pedaços de conversas. Mas algo o deixara intrigado. Ultimamente as conversas referiam sempre o “plantador de palavras”. João conhecia as alcunhas de todos e não descobriu de quem se tratava. Assim que se aproximava para perceber melhor, as vozes calavam-se. Só restava uma solução. Olhou para a varanda da Dona Alzira, onde os vasos, em fila indiana, decoravam o parapeito da janela. Iria perguntar-lhe. Nesse momento, a porta abriu-se e a senhora saiu com um regador. João foi até à cancela.
— Boa tarde! Como tem passado? — cumprimentou com cautela.
— Ó senhor doutor! Bons olhos os vejam. — Sem o olhar, refrescou os vasos. — Sei que anda entretido por aí. Todos gostam de si. — Pousou o regador e dirigiu-se à vedação.
— Sim, é verdade. Todos têm sido simpáticos! — Semicerrou os olhos numa atitude de desconforto. — Dona Alzira, não quero ser intrometido. Ouvi alguém referir-se ao plantador de palavras. Pareceu-me uma pessoa importante para a aldeia, mas ainda não o conheci. — Tossicou para disfarçar a ousadia.
A Dona Alzira riu-se.
— É verdade! Mas ainda não é o momento para o Doutor o conhecer. — Afastou-se enquanto regressava à varanda. Virou-se e encarou-o.— Admire estes vasos com ervas aromáticas. São obra do plantador de palavras. — Regressou a casa.
João franziu a testa sem perceber o alcance do conselho da senhora. Fixou-se nos vasos, mas a sua ignorância “erval” desanimou-o. E nem sequer podia cheirá-las. Prestes a desistir, a Dona Alzira assomou à varanda.
— Eu dou-lhe uma ajuda! Tome nota da ordem: alecrim, manjericão, orégãos e rosmaninho — acrescentou, a rir — … para bom entendedor, meia palavra basta! Até amanhã, se Deus quiser.
João pegou no bloco e registou as palavras. Passou o serão a tentar descobrir o enigma, mas o cansaço e a impaciência venceram-no às primeiras horas da madrugada.
Os dias seguintes passaram sem novidades. Não conseguia desvendar o mistério. Tentou tudo: escrever na horizontal, na vertical, da esquerda para a direita e vice-versa. Não interpretou a mensagem escondida. Frustrado, copiou as palavras, usando diferentes cores para as letras. O espanto acelerou-lhe a alma, porque bastava usar as letras iniciais para desvendar a palavra escondida: amor. Para confirmar, foi até à praça e espreitou para a horta da Dona Laurinda. Favas e ervilhas: fé. Sentou-se no banco para acalmar o turbilhão de emoções. Queria conhecer o plantador que ensinava àquelas gentes o dom da palavra. Recomposto, bateu à porta da Dona Alzira. Ela recebeu-o com um sorriso rasgado como se adivinhasse a sua conquista.
— A sua palavra é amor, mas há outras espalhadas pela aldeia.
— Sim senhor! Sendo assim já o posso convidar para a reunião na coletividade. É no próximo sábado às oito em ponto. — Tocou-lhe no braço. — Há uma regra que não pode quebrar: perguntas só no fim! A palavra é prata, o silêncio é ouro, compreendeu? — maneou a cabeça em tom de despedida.
João mal controlou o entusiasmo. Imaginou um velho sábio e resistente, talvez antigo padre ou professor, que não queria deixar as palavras morrer. Um exemplo de vida ativa que João também ansiava. Faltavam cinco dias.
Não se preocupou com a indumentária. Podia ser ele mesmo, informal, com as suas fraquezas e dúvidas, sem se importar com julgamentos. Animado, chegou cedo à coletividade. Cumprimentou quem ia chegando e não se atreveu a fazer perguntas. Pouco depois, a Dona Alzira convidou todos a entrarem na sala preparada para a reunião: cadeiras em filas viradas para um palanque. Ávido de curiosidade, apercebeu-se, junto ao palco, de uma mesa onde um casal desconhecido estava sentado. Não teve tempo para pensar, pois o som de passos silenciou a plateia. João ficou abismado.
Um jovem posicionou-se no centro e cumprimentou a audiência.
— Olá! Já estamos todos! Antes de começar, quero dar as boas-vindas ao professor João e apresentar-me: sou o Alexandre, tenho 16 anos e sou o plantador de palavras!
João permaneceu calado. A sua perplexidade impediu qualquer reação.
— Pois bem. Hoje vamos começar a ler “Felizmente há luar”, uma peça de teatro. — Aproximou-se da mesa e pegou no livro. — O nome faz lembrar alguma coisa?
— “Quanto mais luz ao luar, mais lhe hão de os cães ladrar” — respondeu a Dona Laurinda.
— “Da lua nova arrenego, mas com a cheia me alegro” — acrescentou o Senhor Inácio.
Alexandre anuía, enquanto o casal escrevinhava em pequenos cadernos. Pouco depois, o jovem, com disfarces feitos à mão e uma voz pausada, iniciou a leitura. João deliciou-se com o espetáculo. As palavras e os gestos envolviam todos numa comunhão literária que só quem assistisse podia sentir. No final, os aplausos de satisfação ecoaram na sala. Alguns regressaram a casa enquanto outros falavam com o casal. João dirigiu-se ao Alexandre.
— Meu jovem, só te posso agradecer. É inacreditável o que fazes!
— Obrigado, professor. A minha avó Alzira falou-me do senhor. Disse-me que andava por aí a escrever. Desconfia que o senhor é escritor.
— Ainda não, mas acalento o sonho. E agora ainda mais, depois de ver a tua ousadia. Como surgiu a ideia?
— Para mim, a leitura é uma janela aberta para o mundo, mas também é a porta de entrada para a sabedoria popular. Eu nasci nesta aldeia rodeado de pessoas simples, mas sábias. Falei com os meus pais — apontou para o casal desconhecido — e eles acharam boa ideia. Tomam nota do que é dito para não se perder no tempo. Como se diz, juntar o útil ao agradável.
João não escondeu a emoção. A sua mente já elaborava um projeto em conjunto com o jovem. Ele até tinha contactos. Não resistiu a fazer-lhe a proposta.
— O que achas de dar voz a essa sabedoria? Pode ser um livro, uma revista.
Com olhos a brilhar de prazer, Alexandre assentiu e respondeu:
— Conte comigo. Afinal, ler e escrever é resistir!