Este receberá, plácido e brando,
No seu regaço os Cantos que molhados
Vêm do naufrágio triste e miserando,
Dos procelosos baxos escapadosIn Lusíadas, Canto X, 128
O rio Mekong brota tímido em terra de homens santos. Cresce, alarga e une povos distantes no seu percurso. Semeia vida e destruição, veloz na ânsia do destino que o acolhe por séculos e séculos. Ao chegar, abre-se em leque, feliz, e desenha um delta de líquida quietação, plácido no término da viagem.
Eram os anos de 1500. Corre o Mekong milenar, a mesma força, rumo ao mesmo mar. Aninha na sua foz povoações agrícolas, de lides simples, trabalhos pesados e respeito pelo natural, sagrado. Comem o que semeiam, e assim se nutrem arrozais nas águas mestiças, fruto do encontro entre doce e salgado.
Como os seus pares, é agricultor. Homem de idade desconhecida, sabendo-se adulto, navega as águas calmas entre os cultivos que cuida pela família que alimenta. Pés firmes, a céu aberto, palpam a lama arenosa que pavimenta o percurso. Protege-lhe a cabeça um chapéu largo que afasta o calor e oculta o rosto. Sobre a camisa que lhe cinge o corpo aquece-o um agasalho pesado de palhinha, fruto do mesmo cultivo que o sustenta. Assim, a calma e paz estão consigo. É ao cuidado que os seus dias são dedicados. Plantas fortes, acarinhadas, alimentarão os filhos e os netos. O grão brota farto nessa estação, agraciado pela bonança divina, mas que não se descuida. O ritual de zelo que se repete mantém a paisagem visível verde com laivos de azul, temperada a sal e sol.
Ao largo do idílio cresce a expansão. História, chamar-lhe-ão, quando recordarem os dias em que as embarcações serviram para que povos distantes se reconhecessem. Conectam-se gentes diferentes e o inevitável principia – trocam posses, mercadorias, pessoas e saberes. Viajam comerciantes em busca de negócio farto, guerreiros para defesa e expansão da arte da guerra, e homens de letras que trovam as pessoas e os feitos, os ambientes e sentires. De trocas tais crescem egos, alimentados a ouro e ambição. Os barcos multiplicam-se. Enchem-se até à borda com porcelanas, sedas e atavios esmaltados, riquezas que deliciarão as cortes, pavões que se passeiam do outro lado do oceano, absortos. A cobiça menospreza a prudência. Uma embarcação repleta é difícil de manobrar e no mar do sul chinês os baixios apresentam-se traiçoeiros para um capitão inexperiente. Os cascos inundam, afundam posses e afogam tripulantes em luta, comerciantes sujos de medo, guerreiros em paz com o seu destino e homens de letras desesperados. E são poucos os relatos que atravessam as águas para descrever todos os desastres que da negligência brotam.
O agricultor começa o dia entre águas sentimentais, barcaça embalada pela brisa que canta o silêncio. Desce um troço até ao arrozal onde se ancora. Solta o agasalho, saúda cada planta e brinca com girinos e rãs vizinhas. Começa o lavor como uma prece que cumpre ritualmente até que o sol aqueça a água sob os seus pés. Na calmaria boia uma tábua curtida que encontra pousio nos seus tornozelos. Um pedaço de madeira quebrado, mas forte, encerado. O lavrador ergue-se com o achado nas mãos e vê outros flutuantes, semelhantes na qualidade, maiores no tamanho, dispersos pelo canal. Sobe à barca, disposto a recolher o que encontrar. São bom material, com corda grossa poderão servir de padiola, remendo na cabana que o abriga, albergue do arroz armazenado. No percurso manso, cada tábua recolhida aguça a curiosidade sobre a sua origem. Chegado ao areal, aporta a barcaça carregada e recolhe outros pedaços. Há outros objetos dispersos pela areia, pálida sob a luz do fim da manhã, mas não lhes percebe utilidade. Ao fundo, um vulto destaca-se. O desconhecido dita cautela, a aproximação é lenta, pausada, até reconhecer um homem. Pele curtida, cabelo grisalho e ondulado, no lugar do olho direito uma cratera, escura e infecta. Barba farta, enfeitada de areia, rodeia lábios gretados e entreabertos, que aspiram ar devagar. Traz o corpo coberto com uma camisa comprida, suja, que ondula leve sobre o peito que ainda respira – adormecido. Prende sob o braço um saco de lona encerada, preso na mão por correias bem cingidas. Apesar de vivo, não responde à voz nem aos movimentos de incentivo do agricultor, que abana o corpo pesado. Mesmo estranho, é um homem, e o deus-sol reina por estas horas. A afronta da exposição direta pode pagar-se com a morte. Assim, o agricultor descarrega a barca, que navega até ao homem entorpecido. Carrega-o em braços para dentro do casco, o saco de lona a rasto, e leva-o consigo. Na aldeia terá abrigo. Como ele, outros acorreram em auxílio, providencia-se enxerga, sombra e água para refrescar o corpo. As mulheres recolhem as crianças, e os homens dividem-se – tratam o moribundo e recolhem dos destroços espalhados o que pode ser de serventia à comunidade.
Passam os dias e o corpo encontrado não desperta. É desnudado, lavado, untado e vestido. Em repouso, mantém-se um dos aldeões na sua companhia. Os seus pertences – o saco que trazia preso, cheio de papel manchado, e as vestes já lavadas – são armazenados. Deitado, de feições cansadas, faces encovadas e órbita vazia, aguarda a decisão divina sobre o seu destino. Esta é-lhe de feição, e uma manhã acorda. O estranho sobressalta-se, vê-se num casebre que não reconhece, com um ancião na sua guarda e grunhe sons que poderão ser palavras, mas soam a gritos roucos. O homem que o acompanha esperava pelo susto, não se aflige com o idioma que não conhece, e aguarda pela calmaria depois da tormenta. Percebendo-se prisioneiro, o estranho abranda. Não parecendo ameaça, é introduzido à aldeia. E tudo olha na busca pelo que em desespero tentou salvar de um desastre. Homem de letras, frases, palavras e textos que são para ele caráter, escudo, arma e ação. São essência e visão. A eloquência com que a sua pena distribui doçuras, desenha feitos e disfere críticas serve-lhe de pouco neste ambiente. Sem essa capacidade de comunicação, vê-se despojado de si mesmo naquele lugar. Apático.
Passam muitos dias, dias que não conta, como o estranho que deambula sem objetivo e escrevinha em tudo o que retenha o seu registo. Aos poucos reconhece pelas boas pessoas que o rodeiam palavras que assemelha às que em exílio apreendeu entre orientais. Com engenho eleva a comunicação ao verbo, coxo, mas compreensível, e cresce de estranho a parte do todo, tornando-se elemento útil na comunidade. Vencido.
Viver a simplicidade de tantos dias iguais, alheado de guerras, mares e reinos, aviva a memória de outros lugares, da terra que o criou e que ele crê sentir-lhe a falta. A ditosa Pátria, sua amada, que entende perdida como à obra que não conseguiu salvar das águas. Escreve-a, apesar de distante e esbatida, canta-a em folhas de pasta vegetal desenhadas a tinta que bagas esmagadas produzem. E com o escrever cresce o querer, não bastando já a calma que o delta do Mekong lhe oferece. Empenha-se na língua nativa até aprender dizeres suficientes para procurar transporte e partir. Com destino à Pátria que o compreende. É à sua partida que, entre despedidas mais e menos sentidas, um ancião devolve o saco de lona encerada cheio de papel riscado, desenhado, já seco depois de molhado. Tal milagre inflama o ânimo do homem e levanta o espírito quebrado. Agora está certo de que a sua Pátria o quer, e que é seu desígnio retornar triunfante de canto e louvor em punho.
Este episódio foi narrado pelo náufrago nas mesmas páginas que arrastou consigo das águas que quase o engoliram. Epopeia enaltecendo a sua nação, lar da língua que o arma, que o homem ama. No país que o recebeu tornou-se lenda, sagrado como feito heroico que atravessou os séculos. E as letras o permitiram. Descrevem, enaltecem, perpetuam. Gravam na memória coletiva o que seria esquecido, não fossem as palavras para o impedir.