Autor(a):

Carlos Musga
Carlos Musga

O sonho comanda a vida

Olhou uma vez mais para a disposição da mesa: tudo tinha de estar impecável. De uma maneira geral gostou muito do que viu. Sempre tinha sido obcecado pela limpeza e ordem. Voltou a contar e recontar o número de pratos, verificou a limpeza reluzente dos talheres, confirmou a brancura nívea dos guardanapos, roçou os dedos pela toalha madeirense, herdada da avó, que saía apenas em dias muito especiais. Atreveu-se até a percutir os copos, para se deleitar com o cristalino som que emitiam. O lustre de oito braços que pendia sobre o centro da mesa — onde reinava a floreira com as flores mais frescas e exóticas — enchia-o de orgulho. 

Quanto mais borboleteava à volta da mesa mais entusiasmado se sentia com o jantar tão próximo — dava pequenos pulos e batia as mãos de contente. Jantar oferecido anualmente, a um naipe restrito de amigos e familiares, para comemorar uma ocasião única: o seu aniversário, que acabaria com o famoso bolo, emoldurado com velas suficientes para incinerar um regimento de infantaria. 

Foi até à cozinha pois tinha de verificar se as iguarias solicitadas à cozinheira estavam a ser habilmente preparadas de modo a perdurarem na memória dos seus convidados. A Céu — sua cozinheira há mais de quarenta anos — , afadigava-se, acolitada por três aprendizes, para transformar uma simples noite de Outono numa ocasião para relembrar. Pelos aromas que insidiosamente invadiam o seu nariz sabia que o palato iria bater palmas. 

Parecia-lhe ter revisto tudo quando se lembrou dos vinhos, sempre elogiados e bebidos com fervor quase espiritual. Não podia haver qualquer falha ou esquecimento. Chamou o Oliveira, o mordomo, levantando a questão, recebendo de volta a confirmação de que todos os néctares estariam à temperatura certa e seriam o complemento certo das vitualhas preparadas pela Céu. 

Passou os dedos suavemente pelas teclas do piano e lamentou uma vez mais não saber tocar, aliás, ninguém na família sabia. Talvez ainda fosse a tempo de aprender: para o ano é que é, prometeu a si próprio. 

Depois desta inspeção minuciosa, derreado de excitação, sentou-se na sala satisfeito consigo mesmo — os seus jantares continuariam a ser famosos. Puxou um charuto e deleitou-se com o perfume que só os grandes conhecedores conseguem encontrar.

Lembrou-se da primeira regra daquele jantar — todos viriam vestidos de branco, como acontecia desde a primeira edição. Era uma boa cor para homens ou mulheres. Teve a ideia quando a sua barba ficou alva. Com a careca não havia nada a fazer: os seus caracóis de juventude — outrora tão invejados —, tinham levantado ferro sem destino conhecido. Tinha experimentado vários capachinhos, mas até os seus empregados se riam quando passava por eles: deitou-os para o lixo e assumiu de forma estoica aquela longa pista brilhante. 

O fumo do charuto trouxe-lhe à memória os convidados dessa noite: em primeiro lugar o seu velho tio António a quem estava eternamente agradecido pela ajuda permanente, permitindo-lhe alcançar uma posição de relevo na sociedade. 

Só com sete ou oito anos lhe contaram como tinham morrido os pais: após uma viagem ao Egito contraíram umas febres que nenhum medicamento conseguiu debelar. Apesar das fortunas gastas em médicos e internamentos, em Portugal e no estrangeiro, foi impossível salvá-los. Talvez por isso nunca se tenha aventurado em viagens longínquas, preferindo a calma e o bucolismo da quinta ali para os lados de Colares, quando o bulício de Lisboa o sufocava. Quando queria viajar deleitava-se na leitura de crónicas de viagens, sentado comodamente à sombra da sua monumental biblioteca. 

O tio, sempre presente nos jantares, vinha normalmente vestido de almirante — farda branca de muitos dourados e condecorações tão bastas e numerosas que quase lhe blindavam o peito. Se bem se lembrava o tio nunca tinha estado na Marinha; era apenas quando queria impressionar o sexo feminino que se fardava a rigor — e como iria lá estar a tia Gertrudes, viúva, recebida com fanfarra quando ia ao banco, ainda fresca para os seus setenta(?) anos, era a ocasião ótima para se pavonear e puxar pelos galões. Monóculo no olho (que no último jantar, de tão alvoroçado com a perspetiva de pedir a mão da amada, deixara cair no prato da sopa e salpicado a frontaria da sua paixão), bigodes retorcidos e pingalim — uma figura inesquecível. 

A tia Gertrudes com uma pele branca encarquilhada (exceto ao olhar do tio António — amor é cego!), — era sempre o centro das atenções, não só pelo seu porte aristocrático, mas acima de tudo pela placa dental que usava pois as gengivas foram mirrando e a placa ficando um pouco folgada, provocando sons de castanholas entre cada mastigadela — uma espanholada —, levando o tio António a sair da mesa e ensaiar uns passos de flamenco para gáudio generalizado — quase sempre no fim do repasto.

Também o Lopes, seu antigo sócio e amigo, era presença certa e garantida; em conjunto tinham gerido e feito prosperar uma retrosaria na baixa de Lisboa. Quem agora o trata por Conde não imagina a destreza manual usada para aviar a freguesia (maioritariamente feminina), desdobrando-se na venda de lãs, fios para crochet, penas naturais, tecidos a metro, linhas, entretelas e botões, tudo arrumado em caixas e caixinhas, gavetas e gavetinhas. Muitos mirones entravam no estabelecimento apenas para admirar o trabalho de estuque que ornamentava o teto. Não foi difícil trespassar o negócio por bom dinheiro e cada um ir para seu lado, embora mantendo sempre o contacto e amizade desenvolvida na retrosaria. O Manuel dedicou-se a educar a alma, a cultivar o espírito e a comprar o título de Conde a um fidalgo(?) falido — que ficou tão radiante que lhe ofereceu o piano que continua mudo e atravancador. O Lopes prosperou nos negócios, até os filhos recusarem seguir as suas pisadas. Depois vendeu tudo a chineses ou indianos (não interessa) sem verter uma só lágrima. 

Quando o Lopes chegou, abraçaram-se longamente e mentiram-se mutuamente — Estás na mesma! O Lopes, vestido de branco, tinha um ar de manequim da rua dos Fanqueiros, com o cabelo ondulado cheio de brilhantina escorrendo por vezes para a gola do casaco levantada no pescoço devido à marreca galopante. Bigode amarelo, pintado pela nicotina, destacava-se numa cara ossuda de olhos inexpressivos. 

Para o grupo estar completo faltava apenas a Eulália: a noiva do Conde havia trinta anos! Por várias razões o casamento foi sendo adiado: uma doença aqui, um ano desaconselhado pelos astrólogos ali, problemas familiares variados e, finalmente, o internamento forçado do Conde durante períodos intermitentes, atiraram a hipótese de casório para as calendas gregas. Claro que nada disso tirava o apetite a Eulália, conhecida como um bom garfo e um bom copo. Costumava dizer — o estômago (e não só) não tem culpa de eu ser noiva há trinta anos — e se bem o dizia melhor o fazia. 

Acontecia com frequência que a meio de refeições mais copiosas (e bem regadas) tivesse um ou outro ataque de flatulência, tendo ficado célebre a frase do Conde em idêntico jantar anos atrás: 

— Agarrem os móveis que a Eulália vai arrotar! 

Neste jantar — mantendo a tradição — enquanto Eulália arrotava alto e bom som, a tia Gertrudes ficava mais destrambelhada e castanholava com a dentadura meia solta, enquanto o Lopes — até aí sossegado — era atacado por uma crise de tosseira, fruto de eternos cigarros

sem filtro acendidos uns nos outros. O lustre de cristal desatou a vibrar. Parecia uma orquestra desafinada que teve o seu auge quando o tio António — já um pouco tocado —, começou a ressonar (roncar!). O Conde ficou sem palavras, sem saber o que fazer! 

De repente uma figura alta e entroncada, também vestida de branco, entrou na sala e dirigiu-se a ele: 

— Senhor Conde, boa noite. São horas de recolher ao seu quarto, e tomar os medicamentos. Eu próprio me encarregarei disso. 

— Desculpe, mas o Senhor não foi convidado para o nosso jantar. É preciso atrevimento para interromper o nosso banquete — disparou de rajada o Conde. 

— O senhor Conde (tinham-lhe aconselhado tratar o Senhor Manuel por Conde que ficava menos agressivo), não me conhece. Sou o novo enfermeiro da ala onde está hospedado e tenho de fazer respeitar os horários de recolher. Não há cá filhos e enteados! 

— Já? Logo agora que estava a dar uma festa para os meus melhores amigos! Posso ficar mais um pouco? O que vão eles pensar de um anfitrião que abandona os seus convidados? Ainda nem conseguimos cortar o bolo. 

— Senhor Conde, os seus convidados têm de sair também. Já dei instruções para trazerem os carros para a entrada da casa — disse o enfermeiro, mergulhando de braço dado no delírio. O respeito pela hora de recolher é muito importante para a sua saúde. Se continuar assim agitado tenho de recorrer a outros métodos menos simpáticos — ameaçou a figura branca, sorrindo, mostrando uma camisa daquelas em que as mangas dão a volta ao corpo. 

— Ainda não tínhamos chegado aos licores — resmungou. Íamos agora para a sala de fumo. Agora que a festa estava a ficar tão animada! Para o ano organizo outra — disse em voz baixa e raivosa. 

— Está bem. Eu vou. Eu vou. Amanhã tenho que falar com o administrador do condomínio para expressar de forma veemente e acutilante o meu desagrado pela forma brutal e carrancuda como a minha festa foi interrompida. Além disso, o cão do segundo andar passa a noite a uivar.

A figura branca impassível escoltou o Conde até ao quarto, enfiou-lhe os comprimidos pela goela abaixo, fechou a porta à chave com duas voltas e abalou. 

Todos os dias acordava a sonhar com a realização da festa. Só assim se mantinha vivo. 

o sonho comanda a vida
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Carlos Musga
Carlos Musga

Carlos Alberto Musga Nunes, sessenta e cinco anos.

Nascido em Almada. Infância e férias de adolescência na minha terra adotiva — Sabugal

Formação em Agronomia ficou a meio. Falta de vocação é a desculpa que normalmente invoco.

Trabalhei quase sempre em áreas ligadas às vendas e gestão, os últimos vinte e três anos no ramo petrolífero.

Desde que fiquei no desemprego — há oito anos — voltei aos livros e à leitura. Dos livros passei à escrita, tendo frequentado (continuo a frequentar) cursos de Escrita Criativa, Ficcional, Humor e Cinema.

Em 2018 publiquei um livro, «O Homem que matou o esquecimento global»  — que reuniu as aprendizagens nesses cursos.

Continuo o meu processo de aprendizagem no meio das letras. Só preciso de tempo. Vontade não falta.

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