Os outros somos todos nós

Os outros somos todos nós

Sentado na sombra de um outrora demasiado presente, admiro a multidão que passa, apressada, indiferente, alheada no seu movimento cadenciado de final de dia.

Conversas cruzadas, telemóveis que retinem, buzinadelas desenfreadas, a cidade em hora de ponta. Ao fundo, um homem bem-apessoado afasta um transeunte que se aproxima. O mundo avança apático, submerso nos seus inúmeros problemas, desinteressado dos que há muito deixaram de ter interesse. Até há pouco tempo fui um deles. Alheado, apressado, absorto. Atropelado pela correria dos dias. 

Fraquejam-me as pernas. Os ossos rangem quando encostados na rigidez do banco onde me quedo. Dezoito meses. Dezoito meses de agonia, onde me afundo, lenta e dolorosamente. Este cerco que me esmaga e asfixia, conquanto a borda se torna cada vez mais difícil de alcançar.

Hoje foi um dia mau. E ontem, e anteontem. Nem me lembro quando foi a última vez que tive um assim-assim. Já para não falar em dias bons. Esses, há muito que não habitam por estes lados.

Distraído em pensamentos pouco abonatórios, nem dou pela noite que cai. As luzes da cidade ofuscam-me o olhar, enquanto o rio, ao fundo, espelha a lua que se espraia pelas margens. Nos prédios em volta, milhares de janelas se iluminam, deixando antever famílias que jantam, mães que embalam os filhos, casais que se amam, vizinhas que assistem à novela do serão. Quem sabe, até o meu glorioso estará a jogar!

Ferro o dente nos resquícios de uma sandes, tão sensaborona quanto ressequida, empurrada com um gole no tinto esquecido, atirado como esmola para junto do caixote do lixo. Quando termino, deixo a cabeça pousar no blusão, dobrado, servindo de almofada. Dizem que a almofada é boa conselheira, mas a minha, de tão gasta, já perdeu a capacidade de me fazer sonhar.

O Tiago costuma dizer — sonhar não tem prazo de validade. Eu sorrio e penso, aos cinquenta e dois anos, o “consumir de preferência até” há muito se esgotou. Aparecerá o Tiago esta noite? É um tipo porreiro. Um bocado inocente, talvez. Afirma que me vai safar. É ponto de honra para ele. Talvez não conte é que, para (quase) tudo são precisas duas partes e eu, por mim, pouco consigo fazer.

O tempo arrasta-se devagar e perco a noção das horas. Embalado pela brisa fresca, deixo-me enlevar. Por entre as estrelas vislumbro-me, de novo, a chegar a casa, estacionar o carro e atirar com a porta. Uma pancada seca faz-me soerguer afogueado:

— A porta, a porta! — gesticulo, afugentando os olhos que me fitam, sem os reconhecer.

— Amadeu, Amadeu! — a voz apazigua-me — Sou eu, o Tiago. O que se passa?

O Tiago estende-me uma água. Despejo-a de um trago e, tremelicante, amasso a garrafa vazia. Recupero o controlo das batidas e o peito, ainda arfante, relaxa nas respirações pausadas.

— Amadeu, penso que chegou a hora de termos uma conversa séria! Não é a primeira vez que o encontro numa situação como esta, mas hoje assustou-me a valer. 

Tiago é firme. Esta noite não escapo. As dúvidas assaltam-me, devo mesmo continuar a escapar? Ou talvez seja hora de aceitar uma mão amiga? Afinal, o Tiago tem sido presença assídua na minha vida.

— Tens tempo Tiago? — num rasgo de coragem, ergo-me.

As mãos firmes de Tiago amparam-me, a tempo de evitar que o chão conheça o baque de um corpo sobre a laje. A névoa envolve-me e só recordo o pisca-pisca de uns faróis azuis intensos.

Não sei precisar o tempo que, veloz, escorre sem dar tréguas. Ao lado da cama vislumbro uma mancha, que se move na minha direção. Reconheço na expressão agastada, os olhos meigos do Tiago. 

— Amadeu, como se sente? — pergunta, solícito.

— Deixámos uma conversa por começar, Tiago. É tudo quanto recordo. 

— Agora não, Amadeu. Noutra altura falamos disso. Diga-me, como se sente? 

— Cansado. Acredito que o meu tempo está a chegar ao fim. Senta-te mais perto, vamos conversar. Devo-te isso.

Fecho os olhos com força. Na mente em desalinho perpassam imagens desconexas. Faço um esforço para organizar os acontecimentos. Não foi há muito tempo, ainda assim, parece-me que foi noutra vida. O Tiago percebe e não interrompe.

— Até junho do ano passado eu fui um homem como tantos outros. A vida corria-me de feição. Dono da minha própria empresa. Abri-a com muito esforço, anos e anos de trabalho para fazer dela aquilo que um dia foi… — a voz embargada, dificulta-me o raciocínio.

— Amadeu, não precisa cont…. 

Pouso a mão no braço do Tiago e corto-lhe a palavra: 

— Não, Tiago! Eu quero continuar. Como eu estava a dizer — retomo — trabalhei muito. Cheguei a ter vinte e oito empregados ao serviço. O meu espaço era o mais bem-conceituado da linha de Cascais. Sobranceiro à praia, vista panorâmica, peixinho bom, enfim, o melhor. Há cerca de três anos, se não me falha a ideia, comecei a ser abordado por investidores espanhóis. Queriam aplicar uns dinheiros em Portugal. Promessas de expansão do restaurante pelas praias de norte a sul do país e, numa ambição desmedida, aceitei a sociedade. Ao início correu tudo de feição, chegámos até a abrir um novo restaurante numa praia badalada. Em trinta anos de trabalho nunca tinha tido tanto dinheiro na mão. Quer dizer, não é que vivesse mal até então. Fiz férias milionárias, paguei grandes patuscadas. Comprei uma mansão sumptuosa, num dos bairros mais reputados da linha. Troquei de carro, por um mais vistoso. Deslumbrava-me ouvir os seiscentos cavalos do motor a roncar. Ofuscado como estava, não percebi que era tudo “fogo de vista”, num logro onde me afundava cada vez mais.

O cansaço impele-me a parar e deixo a pausa prolongar-se. O Tiago é fantástico. Não me interrompe, não faz perguntas, não me pressiona. Aguarda, pacientemente, que me recomponha. Pese embora tenha percebido a curiosidade no seu olhar perscrutador.

— Um dia entra a judiciária no restaurante — atiro, procurando a reação do Tiago, conquanto este pareça adivinhar o fim da história —, à procura dos meus sócios. Havia duas semanas que não falava com eles, acreditava que estavam a trabalhar na expansão da rede de restaurantes. A judiciária remexeu em tudo, embora não me tivesse dito exatamente o que procurava. Fiquei desconfiado. Perdi conta ao número de chamadas que lhes fiz. Em vão. Quando dei conta tinha o fisco “à perna”. Percebi que os meus sócios eram um embuste e que estava enterrado em dívidas. Arrestaram-me todos os bens. Fiquei sem nada e fui parar à rua. Esta é a minha história, Tiago. É por isto que me encontras naquele beco há dezoito meses.

Tiago não aguenta a curiosidade e atira de chofre: 

— Amadeu, e a sua família? Não tem ninguém? O que aconteceu mais que não me quer contar? 

— Não há mais nada a dizer. Fui ganancioso, deixei-me levar pelas aparências, pelas promessas bacocas de uma vida fácil. Esqueci-me de tudo o que aprendi (e vivi) em trinta anos de trabalho — a voz gaguejante não convence Tiago. Na verdade, nunca fui bom a mentir.

Tiago volta a insistir:

 — Não pode ser, Amadeu! Tem que haver mais alguém, irmãos, sobrinhos, mulher, filhos. O Amadeu não ia viver sozinho numa mansão. — Num gesto repentino, Tiago agarra-me a mão: — Amadeu, quero que saiba que não o julgo, não o condeno. Passado é passado. Jamais define o presente. Não me interessa o que aconteceu para vir parar à rua, interessa-me sim fazer tudo para o salvar.

Nada mais me resta. Sou um homem, numa cama de hospital, despojado, vazio, sem perspetiva. Porque não contar ao Tiago o resto da história? Num rasgo de coragem, despejo as palavras, sem encará-lo:

— Tiago, não me orgulho do que fiz. Arrependo-me do que aconteceu. Culpo-me por me ter metido com as pessoas erradas, principalmente por não ser um novato à data dos acontecimentos. Também não sou nenhum santo. Sabes, às vezes sinto que a vida me quis dar uma lição…

Tiago interrompe-me: 

— Porque diz isso? Aconteceu consigo, podia ter sido comigo.

— Não, Tiago, tu és muito diferente. Eu era exigente, mal-humorado, rude, soberbo. Sobranceiro aos outros, até. Duro a julgar e condenar as pessoas pelo seu aspeto, pelos seus comportamentos. Neguei comida e esmola a quem tinha o desplante de mas pedir. O meu pensamento (e tantas vezes a minha boca) dizia-lhes “se não tens o que eu tenho, é porque não fazes o que eu faço” ou “estás nesta situação porque queres, sabe-te bem encontrar tudo feito”. Quando apareciam à porta do restaurante, enxotava-os, como às moscas.

De novo o cansaço me obriga a fazer uma pausa. Tiago volta a esperar, sereno. Ajuda-me a molhar os lábios, com um líquido meloso que a enfermeira depositou junto à cama. 

— Perguntaste pela família, certo? — Tiago acena afirmativamente. — Casado, pai de dois rapagões e de uma menininha, a luz dos meus dias. Uma família impecável, não me deixou cair. Abraçou-me, amparou-me, consolou-me. Senti-me envergonhado. Talvez falhado seja o termo certo. Sim, falhado. Falhei como homem, como pai, como marido. Mudámo-nos para o pequeno T2 de solteira da Augusta. Fiz as mudanças de noite para que não me reconhecessem. Não me julgassem. Até que fugi, como um cobarde. Fugi dos olhares, das más-línguas. Por isso agora estou aqui, a trezentos quilómetros da casa de partida, longe de tudo, longe de todos. Não mais dei notícias à família. Ninguém sabe do meu paradeiro. Ainda me procuraram durante algum tempo, mas consegui sempre ludibriar a polícia e não me dar por achado. Tenho vergonha, Tiago. Tenho vergonha por lhes ter permitido tudo e, por estupidez, os ter deixado sem nada. E agora que estou aqui, em que sinto o fim à espreita, prefiro morrer esquecido do que subjugar-me à opinião dos outros. Os outros que eu tanto julguei, que sempre desprezei e que jurei nunca ser um deles…

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AUTOR(A)
Ana F. Pinheiro

Ana F. Pinheiro, nasceu em 1985, em Almancil, Loulé. Casada, mãe de dois rapazes, licenciou-se em Educação Social. Atualmente exerce funções de Diretora Técnica numa IPSS.

Apaixonada pela leitura, descobriu o prazer da escrita com a participação no Concurso de Escrita Criativa Poeta António Aleixo. Permitiu-se soltar as suas palavras, pondo a sua «Escrita em Ação» e percebeu que é a escrever que se sente completa, feliz e realizada.

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