«[…] e sem um forte afeto e humanidade no coração, […] a felicidade jamais pode ser alcançada.»
Charles Dickens
Faltam vinte euros.
Ricardo pousou o rosto infantil entre as mãos. Nem o dinheiro espalhado na colcha de dragões, nem a pequena vaca de porcelana esventrada, o motivavam. Sentou-se no chão, joelhos dobrados, imaginando que obrigava o desânimo a escorregar dos seus pés para debaixo do tapete. Faltam vinte euros, o preço do sonho de um rapaz de onze anos.
Quando entrou na cozinha, o silêncio era o habitual. Em tempo de férias, Ricardo só teria a companhia dos pais ao jantar, salvo se houvesse uma urgência na clínica. Em minutos, a Carlota faria a sua entrada vinda da lavandaria.
— Bom dia, menino Ricardo. Vou já aquecer o leite. Que cereais prefere hoje?
Uns que fossem mágicos, pensou. Agarrou no pacote dourado e sentou-se ao balcão. Não lhe apetecia conversar, apesar de a Carlota ser meiga e fazer cócegas atrás das orelhas. Ela vivia com eles desde sempre e tratava-o como um neto. Esforçou-se por engolir a má disposição.
— Vai ficar mais arrebitado com a surpresa que os Senhores Doutores lhe prepararam! — Esgueirou o olhar. Sem surpresa as duas esmeraldas ganharam brilho. — Os paizinhos pediram-me para o levar comigo às compras. Assim, ganha uma corzita e pode escolher um presente.
Mais um habitante para a estante vazia de afeto. Ricardo grunhiu; Carlota acreditou ser entusiamo.
Ricardo balouçava o saco como se carregasse um fardo do seu tamanho. Faltavam vinte euros e não arranjara ideias para os conseguir. Carlota contava histórias da aldeia, de tempos incompreensíveis para Ricardo, mas a certa altura sentiu-se a viver no aconchego dessas memórias. Havia carinhos, havia carinhos, menino. Cinco tostões de confeitos, bolinhas de açúcar, na mercearia da Dona Anita. Cinco tostões, vinte euros, cinco tostões. Vinte euros, quantos tostões seriam?
Ao jantar, a esperança coloria o rosto do menino.
— Mãe, pai, como foi o vosso dia?
— Atarefado, mas pelo menos não houve fatalidades. O tempo aquece, os pais facilitam.
— Começam os descuidos com as piscinas, insolações, otites, roséola, para não falar das viroses. Essas são todo o ano — completou o Ricardo.
— Rogério, vê como o nosso filho é um prodígio.
Sim, mãe, Doutora Beatriz, sou como as esponjas dos arranjos de flores que te oferecem. É só deitar água, que elas sorvem em segundos, mas não impedem as flores de murchar, algum dia. Travou o desejo de chorar. As lágrimas são o adubo da fraqueza, avisaria o pai. Faltam vinte euros.
Nessa noite, enquanto a mãe o aconchegava, Ricardo pedia que os sonhos oferecessem ideias para conseguir a quantia em falta. Não podia tirar da carteira de alguém, porque era errado; vender as consolas e os jogos novos, só depois das férias, e teria de arranjar uma desculpa para se desfazer dos objetos. Deixou a mãe fechar a porta e levantou-se. Sem ligar a luz, com a cumplicidade do luar, aproximou-se da estante metálica, o monstro da sua infância. Sacudiu a cabeça e pousou a mão no livro encostado à vaca mealheiro numa das prateleiras. Regressou à cama e acendeu a lanterna, escondida debaixo do colchão. Riu-se da parvoíce. Ninguém o questionaria sobre a necessidade de ter o objeto. Oliver Twist era o seu amigo invisível. Com ele corria pelas ruas londrinas, a escapar-se de ladrões e assassinos. Que vida dura, meu amigo. A minha história é diferente da tua; mas partilhamos o mesmo sentimento. Adormeceu nos braços da esperança.
Ao acordar, pouco se importou com o silêncio. A vontade é o combustível do sonho. Quanto menos se der importância ao que nos assombra, menos medo temos, concluiu Ricardo.
Depois do pequeno-almoço, telefonou à Mariana, colega da escola. Ela vivia a pouca distância e os pais permitiam que fosse brincar com ele durante a tarde. Apesar da insistência, nada revelou, quando lhe pediu que trouxesse uma pulseira da mãe.
Quase não almoçou. Receava que a amiga não conseguisse a joia e compreendia; afinal seria arriscado. Por isso, pediu-lhe que encontrasse uma pouco valiosa. Resistiu à curiosidade da Mariana, tal Tom Sawyer, sempre determinado a esconder os disparates. A leitura era uma companheira desde os seis anos. Embrenhado nas páginas, chorava, ria, viajava, estudava as personagens e fazia delas suas confidentes ou forças a combater. Enquanto lia, sentia-se dono da sua infância, dos sabores com que celebraria a fase mais pura da vida. Amava as suas prateleiras de madeira, onde depositava tesouros em folhas, mundos de afetos em papel.
Contou os segundos, mas a tarefa era pouco graciosa; limitou-se a viver o tempo como se fosse uma criança. Soltou uma gargalhada. Na realidade, não passava de uma criança, segundo as leis dos adultos.
Pela janela, viu-a. A correr, abriu a porta e levou-a para o estúdio de brincar.
— Calma, Ricardo.
Mariana deliciava-se com aquele espaço. A sala, em forma de retângulo, com janelas rasgadas para o jardim com piscina, definia o paraíso. Estantes repletas de livros cobriam uma das paredes. Do lado oposto, uma secretária com um computador junto a um espaço com sofás, tamanho de crianças, e uma mesa-redonda ao centro. No canto mais afastado da entrada, um enorme televisor fixo na parede com um cadeirão de jogador profissional. As duas consolas, que jaziam na estante metálica do quarto, nunca fizeram parte do cenário. Ricardo chamava-lhe o estúdio de incubação infantil. Os livros de medicina pediátrica, o chamamento tecnológico, não lhe interessavam. Gostava de se sentar no sofá a ouvir as histórias da Mariana.
— Conta-me outra vez o fim de semana na Serra da Estrela. Visitaste uma queijaria e os teus pais…
— Já a sabes de cor. Para quê repetir?
Ricardo baixou o olhar. Não queria afugentar a amiga, ou que pensasse que ele sofria de alguma obsessão. Desejava profundamente apropriar-se das histórias para alimentar o seu próprio sonho, mas não o podia confessar.
— Tens razão. Gosto de ler e as tuas histórias são magníficas. É só por isso. — Começou a tirar espigões imaginários. Suspirou.
— Olha, Ricardo, somos amigos desde o infantário e sei também que nos últimos tempos tens-me parecido alheado. Usei bem a palavra, certo? Alheado, é mesmo assim que andas. Depois pedes-me para arranjar uma pulseira da minha mãe. O que se passa?
Ricardo já decidira partilhar parte do plano à amiga. Faltavam vinte euros. Isto não lho diria.
— Pretendo oferecer um presente à Carlota, mas vou enganá-la. Digo-lhe que quero comprar uma prenda para a mãe. Ela dá-me o dinheiro e depois mostro-lhe a pulseira. Por isso, não posso usar uma da minha mãe, porque a Carlota vai reconhecê-la. — Por ora, escondeu da amiga o verdadeiro golpe teatral.
Mariana derreteu-se com a bondade do amigo. No fundo, sabia que a empregada era como família para o Ricardo. Desconfiava que se sentia sozinho, mesmo que tivesse tudo o que desejava. Ou talvez não.
Tirou a pulseira de couro com uma medalha em forma de árvore.
— Empresto-ta por dois dias. A mamã vai trabalhar na associação e acredito que não dará pela falta.
O abraço selou o compromisso entre os dois amigos.
Faltam vinte euros. Quando terminou de escrever o diálogo, foi à cozinha. Encontrou a Carlota a preparar-se para ir ao centro comercial.
— O meu menino sempre pronto a horas. E hoje vamos comprar a prenda para a mãezinha. Quando se aperceber do dinheiro gasto, já estará a abraçar o meu pequenote.
Ricardo sorriu-lhe com o olhar. Perscrutou os movimentos dela numa antecipação que pretendia controlar. Sou uma criança. Será que consigo? Quando se apercebeu da nota azulada, encarnou Oliver Twist e, com a serenidade devida, colocou o dinheiro na carteira. Faltava agora que tudo corresse como planeado no centro comercial.
Fechou a porta do quarto e saltou para a cama. Tapou a boca, porque não confiava que a alegria não se revelasse num sonoro «consegui». Numa mão segurava a pulseira; na outra a nota azulada. A Carlota não suspeitara da tramoia: enquanto esperava na secção do talho, ele pedira para ir ver a bijuteria. Nunca fora um miúdo desobediente, trunfo de caráter infalível. Passou algum tempo na secção dos livros e regressou para junto da empregada. Mostrou-lhe o embrulho em papel colorido, feito pela Mariana, e garantiu-lhe que já pagara. Justificou-se com o entusiasmo de ter adorado a pulseira. Quando regressaram a casa, apesar de a Carlota não querer que estragasse o embrulho, Ricardo mostrou-lhe o presente. Ver com os próprios olhos, não é assim para fazer crer? A empregada bateu palmas, deu-lhe um beijo repenicado e iniciou as suas tarefas.
Já não faltam os vintes euros. Faltam as palavras ensaiadas.
Embora não delirasse com a tecnologia, encontrou a aplicação. Chamou a Carlota ao estúdio de incubação e pediu-lhe para ler um diálogo. Preciso de treinar para a peça de teatro e só tu estás disponível, palavras convincentes, ensaiadas.
«Quero marcar uma consulta para o meu filho. José Maria Azevedo. Nove anos. Sofre do coração. É carente, mas há outro problema. Uma mãe sabe. Já agora, prefiro ter logo as duas opiniões. Marque para o Doutor Rogério e para a Doutora Beatriz. Eles trabalham juntos, certo? Um pediatra e uma psicóloga ajudarão o meu filho. Pago as duas consultas, claro! Dinheiro não é problema. O importante é o meu José Maria. Sim, é este o número de telemóvel. Na próxima sexta-feira? Às quatro? Lá estaremos. Obrigada.»
Se a Carlota percebeu as coincidências, não o referiu. Nem suspeitou dos dois telefonemas que Ricardo fez durante a tarde. À noite, os pais autorizaram que fosse passar algumas tardes a casa da Mariana. Avisar a Carlota seria suficiente. O pai da amiga viria buscá-lo.
Sexta-feira, três da tarde.
O pai da Mariana continha as lágrimas por detrás dos óculos de sol. Não suportava o sofrimento daquele menino e surpreendera-se com o alcance do amor de um filho. Quando Ricardo lhe contou o seu plano, decidiu ajudar. Desejava que fizessem o mesmo pela filha. Crua realidade dos dias de hoje. Criamos, educamos e esquecemo-nos de conjugar o verbo amar nas suas variantes mais simples.
Cinco minutos para as quatro.
Entraram na clínica e subiram ao piso dois. A rececionista, contratação temporária, cumprimentou-os e pediu o nome. «José Maria Azevedo. Aguarde um pouco, os doutores já estão no consultório a preparar a sessão-consulta». Ricardo enlaçou as mãos. A funcionária não o reconhecera.
Pouco depois, tocou a central de chamadas. «Sim, já está aqui. Sim, Doutor. Podem-me acompanhar. Cinco, seis, sete passos. É essa porta à direita.» Voltou apressada para a receção.
Ricardo estacou. Já não faltavam vinte euros. Só um gesto. Mariana aproximou-se e tocou-lhe no ombro. O pai dela lançou-lhe um sorriso de coragem. Empurrado pelo amor que nele vibrava, memorou a entrada em cena: «Está tudo bem. Sim, sou o José Maria Azevedo e não é tempo perdido, posso pagar. Sou uma criança, o vosso filho. Não encontrei outra forma; agora vão olhar para mim.» Mais palavras treinadas.
Aproximou-se da porta e ouviu José Maria Azevedo. Não se mexeu. José Maria Azevedo. Empurrou a porta e olhou os pais. A perplexidade deles não desmoronou o sonho. Ricardo limpou as lágrimas, que, para ele, eram adubo da coragem.
Explodiram as palavras ensaiadas, libertou-se o travo do coração.