À maneira de Xavier de Maistre, isto é, sem sair de casa, instruído pelos preceitos descritos por Pierre Bayard e guiado pelo Google maps, deambulo pela Odessa judaica que começa na Praça Grega e continua pela Alexandrovsky Prospekt, Mercado Antigo, Yevreiskaia, Bazarnaia, estendendo-se pela Malaya-Arnautskaia e, do outro lado da Rua Preobrazhenska, através da Rua Tiraspolskaia, até à Rua Staroportofrankovskaia; e dali, até ao famoso mercado Privoz e ao bairro de Moldavanka. Mais adiante, fica o bairro Slobodka de onde partiram os comboios de deportação durante a ocupação germano-romena. À primeira vista, parecer-me-á um lugar um pouco abandonado, mas à medida que me vou esgueirando pelas suas ruas e pátios, as personagens exuberantes e a Odessa babeliana revelam-se-me como um caleidoscópico submundo exuberante e poético.
No mercado de Privoz, que ocupa um quarteirão inteiro adjacente a Moldavanka, enfileiram-se bancas de comerciantes arménios e georgianos repletas de frutas secas e ervas aromáticas, peixe defumado, carne seca apimentada, queijo brinza, sumo de romãs, churchkhela.
Caminho com instrução à maneira de um flâneur imaginário no mapa de Odessa onde os nomes das ruas falam comigo, assomando a pátios empedrados com estendais de roupa secando ao sol, ladeados por casas baixas de madeira. Vou por ruas que já não existem, saudando os moradores que antes habitaram os edifícios que agora imagino.
A rua Gloukhaia, onde os gângsteres de Babel se refugiaram no bordel de Yoska Samuelson, hoje leva o nome de Bougaevskaskaia, depois de muito tempo ser chamada de Instrumentalnaska. A rua Prokhorovskaska onde morava o ferreiro Pyatirubel recuperou seu antigo nome depois de ter sido chamada de Khvorostin.
Passo junto ao número 23 da Rua Dalnitskaia, junto ao lugar onde estava a casa onde morou Babel para ver se ainda andam por ali, num travestismo exuberante, tal como andam nos seus Contos, “os judeus joviais e intrépidos do Sul, efervescentes como vinho barato”, “os aristocratas de Moldavanka enfarpelados com cores de framboesa, de pescoço atarracado nos casacões ruivos e com o couro azul-turquesa das botas a rebentar-lhes nas pernas carnudas” e as mulheres com vestidos de gala escarlate, calçadas com botas de homem.
E na esquina das ruas Dalnitskaia e Balkóvskaia, muito perto da Rua Isaac Babel (antiga Vinogradnaia), passo diante da casa onde Babel situa a loja de Lyubka Chnéiveis, conhecida como Lyubka, o Cossaco. Aspiro “o aroma de muitos mares e de vidas maravilhosas, misteriosas para nós”. Espreito a página do livro aberta sobre balcão e vejo “azeitonas vindas da Grécia, azeite de Marselha, café em grão, vinho málaga de Lisboa, sardinhas da marca Philippe & Kano e pimenta-de-caiena” .
Na Rua Gospitalnaia, um portão entreaberto revela-me uma fila de mesas postas serpenteando ao longo de um pátio. Convidam-me a entrar e a sentar-me à mesa farta: “O cozinheiro negro do Plutarco, chegado há três dias de Porto Said, levou para longe dos olhos da alfândega as garrafas bojudas de rum jamaicano, o licoroso vinho madeirense, os charutos das plantações de Pierpont Morgan e as laranjas dos arredores de Jerusalém. Eis o que a espumosa maré-alta do mar de Odessa lança na praia, eis o que às vezes chega aos mendigos hebreus nas bodas hebreias.”
Sento-me à mesa com Babel e, por um instante de paz, esqueço que no mar em frente de Odessa já se perfilam os navios russos prontos a lançar metralha incandescente sobre a cidade e que desde a Crimeia, no outro lado do Mar Negro, há lança-mísseis apontados à cidade.
Este texto é um excerto adaptado de uma crónica viageira mais ampla, intitulada “Odessa, cidade aberta”, publicada em Revista de Estudos do Mediterrâneo. ICIA, 2022.