24 de dezembro, tocou o alarme. Desliguei-o. Dia CINZENTO e nublado escurecia os dígitos do aparelho, impiedoso e pontual. Voltei a aninhar-me na cama mais uns minutos, mas, passado menos que isso, o alarme tocou outra vez. Desliguei-o. Santo Deus, invoquei. Pedaços de lã unidos, em forma de malmequeres, divina obra de arte, pousava sobre o meu corpo. O vale das mantas, coloridas e tricotadas à mão pela minha irmã Matilde, iria arrefecer. Virei-me, voltei a virar-me e, não, não queria sair do leito quente e com intenso cheiro a lavado, a lavanda. Preparava-me para me levantar da cama, mas ainda não eram sete horas e os olhos teimavam em não despertar, pesados e com a perfeita ardência habitual, resultado direto da sucessão de noites mal dormidas. Andava inquieta. Em tempos, o Natal foi a altura do ano preferida. Hoje em dia, representa apenas um dos meses de maior faturação do salão, sinónimo de embonecar clientes. Minhas amadas clientes. Permanentes, madeixas, nuances, balayages, californianas, com prata, touca, papel vegetal ou trabalhadas com simples pincel, terminologia que varia consoante o tempo da técnica de aplicação do descolorante nos fios, nada mais prazeroso de se executar. E as pinturas de vários tons de tinta, todos os que se possam imaginar, todas as combinações que a roda cromática, ferramenta fiel, explicadora exímia da relação entre as cores, permite, eu tenho. Do AZUL ao ROXO, passando pelo VERDE, gelo quando os uso. Gosto mais do VERMELHO, AMARELO, LARANJA e ROSA. Estão na moda as cores quentes. VERMELHO COM BOLAS BRANCAS, desenhadas num cabelo curto com patilhas pretas, fi-lo a uma jovem espanhola. Divina criação! Fartei-me de chorar. A minha fonte de inspiração foi o vestido da Minnie que sonhei usar no Carnaval, quando era pequena. Com cinco ou seis anos, lembro-me de o retirar do guarda-roupa da minha irmã. Passei horas diante do espelho, com ele vestido, maquilhada, nariz e os bigodes de rato, pintados com lápis PRETO, empoleirada nos sapatos de verniz e tacão alto da minha querida mãe. Diverti-me imenso naquela tarde. O meu pai, quando me viu, disse-me que o disfarce me assentava bem e sorriu, elevando o seu bigode farfalhudo. Ao contrário, a minha mãe deu-me uma valente palmada no rabo. Doeu-me. Tinha mão pesada . Com voz estridente, ordenou-me que o despisse, pois o disfarce carnavalesco era de menina, da minha irmã. Desde tenra idade, que aprecio o mundo da beleza feminina, a arte que dele advém. A nostalgia do Natal reaviva-me memórias longínquas. Levantei-me. Pus os pés no chão, vesti-me, comi uma torrada com manteiga e saí em direção ao salão. Fui trabalhar.
Pelo caminho, vi um jovem de cabelo solto, franja picotada e, de forma consecutiva, escovava o cabelo, rua acima, rua abaixo. Uma catarse momentânea. Livre, sem ninguém, feliz. Arte, talvez. Loucura, para quem o viu a percorrer a rua, de certeza. Eu própria não sei o que foi aquilo, mas o que tenha sido, foi o momento do estado mais puro e genuíno de libertação daquele ser. Ainda hoje, não sei se teria coragem para fazer algo semelhante. De repente, um emaranhado de recordações teimava em vir-me à cabeça. Lembrei-me do dia em que rompi com tudo e vesti minissaia, meias de renda e casaco de cabedal. Perfumei-me com o que havia na casa-de-banho. Nesse preciso dia, à noite, descolorei, pela primeira vez, as sobrancelhas e pintei-as de ROSA. Foi o ponto de partida de tudo. Mais uma breve memória martelava-me o cérebro, ainda, lento.
Cheguei ao salão. A agenda estava preenchida. Um corte seria o meu primeiro trabalho. Cortes curtos, médios, longos, os indiscretos são os meus favoritos. Os sofás da entrada estavam repletos de clientes que aproveitavam o tempo para não fazer nada. Maria, a nossa relações-públicas servia café. Não fazia parte das suas atribuições, mas a afluência era tanta que que não havia grande escolha. As clientes aborrecidas tornavam- se abusadoras. Mal pousei o casaco ROSA às riscas VERMELHAS, as luvas de pele, o gorro e a clutch, tocou o telefone .
— Fala da Gigi Beauty em que podemos ajudar?
Do outro lado, uma voz masculina identificou-se como sendo médico cardiologista e perguntou-me.
— Tenho uma paciente que está prestes a falecer e deseja que seja a menina Gigi a arranjar-lhe o cabelo. É o último desejo da senhora. Tem disponibilidade?
— Por amor à arte, vou — respondi.
Desliguei o telefone. Quer-me a mim e só a mim. É provável que tenha sido alguma cliente para a qual trabalhei em tempos. Perdi a conta a quantas atendi. É mais fácil elas lembrarem-se de mim do que eu delas. A minha memória vai deixando de conseguir reter tudo o que vivenciei. Só as coisas que me marcaram se transformam em memórias que não dormem e não me deixam adormecer à noite. São de tal forma cruéis que me consomem sempre durante o dia de Consoada. Eu mereço! Ora, atender uma pessoa antes do último suspiro não é coisa de que goste em particular, mas é o mínimo que posso fazer por respeito à arte que escolhi. Com o salão cheio, não hesitei. Anotei a morada na agenda, despi a bata ROSA e vesti uma blusa e umas calças BRANCAS, em bordado inglês, para dar alguma serenidade. Peguei num cravo VERMELHO, a flor preferida da minha querida mãe, que tinha na jarra do balcão, pu-la ao lado da mala e do estojo de corte que me acompanhavam aos domicílios.
Cheguei ao portão de uma casa minimalista no centro da cidade. A anotação da morada indicava que foi dali que solicitaram os meus serviços. Toquei à campainha. Os portões abriram-se. Entrei. Um jardim desprovido de cor, com somente duas franzinas árvores e um vasto chão em cimento, causou-me algum desconforto visual. Fui induzida a pensar que os seus moradores seriam, por um lado, pessoas abastadas, pelas generosas dimensões do jardim, da casa, pelos carros de grandes marcas estacionados em fila, perto da piscina exterior, por outro, seriam pessoas entediantes e tristes, pois ninguém aguenta aquela morbidez plantada. CINZA, VERDE, AZUL. Se o tempo voltasse atrás, levaria aquela gente à minha infância para que vissem os fantásticos dias que passei na piscina de casa de campo dos meus pais. Todavia, à medida que cresci, comecei a desinteressar-me por chapinhar. As regras infindáveis da minha querida mãe afastaram-me da água que tanto gostava. Suplício dos suplícios, calção de banho, chinelos PRETOS, cor neutra que era obrigada a usar. Triste memória, mas o dia estava cheio delas. Preparava-me para ter pela frente uma pessoa jovem e não uma pessoa idosa como pensei que encontraria quando atendi a chamada. A ideia padronizada de que a morte só bate à porta dos mais velhos, e que têm casas velhas e por aí adiante, não a devia ter tido.
A porta de entrada abriu-se. Fui recebida por um homem alto, corpulento, cabelo grisalho, rosto delicado, ornado por óculos de massa redondos, fato elegante, perfume forte e amadeirado, dos seus cinquenta e poucos anos, cujo tom de voz era o mesmo que ouvi ao telefone. Larguei um suspiro. Ui! Controlei-me para não parecer oferecida. Que homem bonito! O médico encaminhou-me para uma sala e pediu-me que aguardasse. Sentei-me num sofá BEGE com grandes almofadas, que serviam para recostar as costas e adormecer. Estava a precisar. Se demorassem a chamar-me, aconteceria pela certa. Enterrei-me confortavelmente no sofá, que era daqueles que nos engolem sem pedir licença. Fiquei parada, meio a medo de adormecer, não era nada profissional, mas vontade não me faltava para fechar os olhos. Um cheiro familiar entrava-me pelas narinas e vinha de qualquer compartimento ao qual não tinha acesso. Lembrava-me o bolo de cenoura com chocolate que a minha querida mãe fazia. Que saudades daquele bolo tão fofo e cremoso. Nunca me contentava com uma só fatia. Três, quatro, cinco… E comia-o à colher. A forma era daquelas de buraco no meio, onde a cobertura de chocolate ficava generosamente reservada até se partir a primeira fatia. Bolo vulcão, chamam agora. Chamo-lhe bolo de cenoura e chocolate com buraco da minha querida mãe. enhum bolo de cenoura superou aquele que comi na infância, feito pela dona Antonieta , assim c omo qualquer prato ou iguaria que ela preparava para os almoços e jantares em família nunca foi superado pela técnica gastronómica mais sofisticada de chefs ou pasteleiros renomados. Longos anos passaram desde que a perdi. Imagino que para ela não terá sido fácil perder um filho crescido. A minha morte foi necessária para que entendesse que não deixaria de ser quem sempre fui, a Gigi. A perda dilacerante deixou-me marcas profundas. Tudo teria sido mais fácil se não o tivesse feito. Deambulações, difícil não as ter nesta época do ano. Faz cinquenta anos que renasci.
Sem contar, pressenti passos a aproximarem-se da sala. Olhei em frente. Fiquei imóvel, mas não pude deixar de prestar atenção ao centro da mesa de jantar. Uma jarra cilíndrica com cravos VERMELHOS. Por detrás, uma parede cheia de fotografias que davam um toque mais pessoal àquele espaço desolador, fez-me levantar do envolvente sofá e bisbilhotar quem seriam os donos da casa. Eis que ouvi a mesma voz grossa chamar-me.
— Gigi, pode acompanhar-me?
Levantei-me e segui atrás do médico. Um cheiro a doença pairava desde o corredor. No quarto, virei o rosto em direção a cama com a testeira forrada a veludo. Baixei o olhar. Caiu-me das mãos o cravo VERMELHO, a mala e o estojo de corte. Não pestanejei. Não suspirei. Não sei o que fiz. Magra, pálida, deitada sobre os lençóis BRANCOS, definhava. Não desejava vê-la, nem mais um minuto. Porém, fiquei sem forças para fugir. Para mim, lembrar-me-ia dela daquele jeito moribundo e, para ela, seria a última vez que me teria por perto. Tive de ficar. Olhou-me e eu olhei-a. Baixou a cabeça e eu igualmente. De seguida, levantou-a e eu também. Ergueu o sobrolho e eu o meu. Chamou-me. Mal percebi que palavras pronunciou. Cheguei-me perto da cama. A voz fraca, quase sumida, fez-me ajoelhar diante dela. A sensação era estranha. Boa e má. Permaneci quieta. Aguardei que dissesse algo, mas o quê? O que haveria para se dizer naquele momento? Tanta coisa foi dita e deveria ter ficado por dizer e tanta coisa deveria ter sido dita e ficou por dizer. Observou-me bem fundo com os olhos azuis, encovados pela magreza extrema, tossiu. Um silêncio tumular instalou-se no quarto. Pegou-me na mão e perguntou-me.
— Arranjas-me o cabelo, Gigi, minha querida filha?
PoR AMoR à ArTe, assim o fiz.