Autor(a):

Ana Salgado

Porque é que um revisor de textos deve resistir?

Explicar o que é um revisor de texto, o que faz esse indivíduo durante o dia, como passa as suas horas, de que vive, é sempre um assunto intrincado quando não exige até uma rebuscada explicação para que os seus ouvintes o compreendam. Parece não haver tempo para tarefas de edição e de revisão e o tempo foge. Um revisor profissional geralmente tem prazos muito apertados a cumprir e que muitas vezes se sobrepõem. Ainda assim os revisores resistem e deverão sempre resistir à pressa frenética dos dias, aos prazos editoriais apertados, à urgência de tudo ser para ontem.

Um revisor é uma criatura que trabalha na sombra para garantir aos outros um lugar ao sol. E não é que isso represente qualquer lado lunar desta profissão. Afinal o revisor que verdadeiramente abraça a sua profissão para aí caminha e aí quer residir. Almeja ser uma espécie de mão invisível que aperfeiçoa, em muitos casos – mais talvez dos que se possa imaginar –, conteúdos alheios. A experiência já me vai dizendo que as vezes que nós, revisores, nos tornamos mais visíveis recordam-nos episódios de quando uma falha foi detetada a posteriori, ou seja, quando o texto já foi divulgado. É habitual, nesses casos, o leitor procurar, de imediato, a ficha técnica para responsabilizar o «culpado», ou, então, recebemos uma chamada do editor ou uma mensagem que nos cai na caixa do correio evidenciando a gralha num determinado livro. Poderão os revisores ser profissionais imaculados? Tal não existe. Desconheço qualquer nirvana nesta área. Quase que me atrevo a dizer que a revisão é uma faca de dois gumes. Por mais que cuidemos de um texto, por mais que sejamos dotados de um sublime olhar de lince, de uma visão atenta direcionada ao pormenor, um estilo proficiente, quantos de nós, revisores, ao folhear o manuscrito acabado de publicar, nos deparamos com uma gralha esbugalhada a fazer-nos sinal. «Eh, eh, fintei-te! Nem deste por mim nas tuas sucessivas leituras!» É ingrato? É. Mas não podemos aspirar à glória da perfeição, podemos antes atenuar esse golpe interiorizando que, afinal, somos mesmos humanos e, em muitos casos, relembrar as condições oferecidas para o desempenho de um determinado trabalho. Tenho defendido, em várias ocasiões, que o trabalho editorial de perfeição seria aquele em que fosse possível passar um mesmo texto por dois olhos diferentes.

Contudo, desengane-se se ainda acredita nesse mito enraizado de que a atividade se resume à caça à gralha. Não. É muito mais do que isso. Talvez fosse mais correto dizer que mais do que rever nós, revisores, depuramos e polimos os textos. Um revisor,  além das suas competências linguísticas, tem de ter desenvolvido as suas competências textuais que lhe possibilitem um aprimoramento dos textos, quer a um nível estrutural, discursivo e estilístico. Como é que se desenvolvem essas competências? Pela prática associada à busca de conhecimento e a um incessante pôr em causa. A dúvida é nossa aliada.

Mas então, afinal, em que consiste a edição e revisão de textos? São tarefas que se relacionam com um exame minucioso sobre o que se lê, em busca de lapsos e problemas, e é certo, caçando gralhas, mas distanciando-nos o suficiente para poder julgar a compreensão e legibilidade da escrita linha por linha. É um trabalho de sapa mas fundamental em qualquer escrito. Em traços gerais, um revisor concentra o seu trabalho em questões ortográficas, morfossintáticas, estilísticas, mas também em termos de organização, estrutura e clareza do conteúdo. Na verdade, tudo se poderia resumir em tornar a leitura mais aprazível aos futuros leitores aquando da publicação ou disponibilização dos textos definitivos.

Aproveito para esclarecer um outro ponto com que geralmente sou confrontada. Muitas vezes me têm questionado por que razão um texto traduzido para português, sendo que o tradutor é alguém também especializado em questões de língua, necessita de revisão. Não confundamos. Ambos desempenham funções diferentes e têm olhares diferentes sobre um mesmo texto. Um bom entendimento entre estas duas classes, o apontar construtivo, são sempre mais-valias para cada um deles.

Reler e rever é também saber resistir. Uma forma de resistência que deve perdurar.

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AUTOR(A)
Ana Salgado

Ana Salgado é revisora, lexicógrafa e formadora. Na área da revisão e edição de texto, tem colaborado com várias editoras nacionais, como a 20|20 Editora, Guerra & Paz Editores, Relógio d’Água, Bertrand, Prime Books, entre outras. É doutorada em Tradução e Terminologia, pela Universidade Nova de Lisboa e licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Estudos Portugueses, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. É presidente do Instituto de Lexicologia e Lexicografia da Academia das Ciências de Lisboa e coordenadora da edição digital do Dicionário da Língua Portuguesa da mesma instituição.

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