Preferia que não me faltassem as palavras quando preciso delas

Preferia não enfrentar a página vazia, demasiado ar entre as palavras, demasiado tempo entre os pensamentos. Preferia que não me faltasse a ironia nem a audácia. Que o que escrevo fosse sempre transparente e reflexo de quem sou, mesmo quando escrevo sobre coisas feias, mesmo quando escrevo a morte e a solidão de que não padeço. Preferia que os meus dias se fizessem só de livros, os meus e os dos outros, e que, nos intervalos do que escrevo, pudesse gastar o tempo a domar as ideias que tenho sobre o que ainda quero escrever. Preferia que não me faltassem anos de lucidez e de serenidade, dois ingredientes essenciais à minha escrita. Preferia que não me limitassem, que não me cortassem as asas, que não me impedissem de ser só porque sou mulher, portuguesa e escritora.

Preferia que me lessem sem saberem quem sou, a obra independente do autor, a obra para além do autor, porque o que escrevo é muito mais do que o que sou (e vice-versa). Preferia que os anos que me falta viver fossem vividos perto do mar, as tempestades a rasgar silêncios, o nascer do sol na minha boca diariamente. É possível que sonhe mais do que concretizo, mas há coisas que não têm preço e a minha liberdade é uma delas.

Preferia que não me levassem demasiado a sério e que entendessem que, por vezes, estou só a preencher silêncios, como quem tem medo dos monstros que lhe habitam a mente. Preferia que não me julgassem antes do tempo. E que me fosse sempre possível existir inteira nas palavras, nas ideias e nos momentos.

Preferia que me recordassem pelo que deixei escrito, pelos instantes de fuga que as minhas histórias possam ter trazido a quem quer que as tenha lido. Preferia que não me fosse silenciada a voz, que não me fosse recusado o espaço, que não me fosse tolhida a imaginação.

Preferia que pudesse viver sempre assim, com palavras a surgirem de dentro de mim. Preferia que nunca me faltasse o ar, nem o tempo, nem a dimensão.

Preferia. E prefiro. Sempre, sempre, sempre escrever.

A pedido da Autora, este texto não segue a grafia do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Partilhe:
AUTOR(A)
Lénia Rufino

Lénia Rufino nasceu em 1979, em Lisboa. Cresceu nos subúrbios, rodeada de livros. Estudou Publicidade e Marketing, mas devia ter estudado Psicologia Criminal, a sua grande paixão a par da escrita. Aos dez anos escreveu o seu primeiro conto e decidiu que, um dia, haveria de ser escritora. Demorou trinta e dois anos a conseguir.
Publicou vários contos no DNJovem e lamenta a extinção desta plataforma de divulgação de novos talentos. É autora de blogues desde 2003. Atualmente, colabora com o Repórter Sombra (www.reportersombra.com), onde publica contos mensalmente. O Lugar das Árvores Tristes é o seu primeiro romance.

MAIS ARTIGOS