Preferia não enfrentar a página vazia, demasiado ar entre as palavras, demasiado tempo entre os pensamentos. Preferia que não me faltasse a ironia nem a audácia. Que o que escrevo fosse sempre transparente e reflexo de quem sou, mesmo quando escrevo sobre coisas feias, mesmo quando escrevo a morte e a solidão de que não padeço. Preferia que os meus dias se fizessem só de livros, os meus e os dos outros, e que, nos intervalos do que escrevo, pudesse gastar o tempo a domar as ideias que tenho sobre o que ainda quero escrever. Preferia que não me faltassem anos de lucidez e de serenidade, dois ingredientes essenciais à minha escrita. Preferia que não me limitassem, que não me cortassem as asas, que não me impedissem de ser só porque sou mulher, portuguesa e escritora.
Preferia que me lessem sem saberem quem sou, a obra independente do autor, a obra para além do autor, porque o que escrevo é muito mais do que o que sou (e vice-versa). Preferia que os anos que me falta viver fossem vividos perto do mar, as tempestades a rasgar silêncios, o nascer do sol na minha boca diariamente. É possível que sonhe mais do que concretizo, mas há coisas que não têm preço e a minha liberdade é uma delas.
Preferia que não me levassem demasiado a sério e que entendessem que, por vezes, estou só a preencher silêncios, como quem tem medo dos monstros que lhe habitam a mente. Preferia que não me julgassem antes do tempo. E que me fosse sempre possível existir inteira nas palavras, nas ideias e nos momentos.
Preferia que me recordassem pelo que deixei escrito, pelos instantes de fuga que as minhas histórias possam ter trazido a quem quer que as tenha lido. Preferia que não me fosse silenciada a voz, que não me fosse recusado o espaço, que não me fosse tolhida a imaginação.
Preferia que pudesse viver sempre assim, com palavras a surgirem de dentro de mim. Preferia que nunca me faltasse o ar, nem o tempo, nem a dimensão.
Preferia. E prefiro. Sempre, sempre, sempre escrever.
A pedido da Autora, este texto não segue a grafia do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.