quando sonho acontece

Quando o Sonho Acontece

A revolta esvazia-nos por dentro e revela-se no anímico que nos caracteriza. Rompe os poros e perfuma o ambiente com o odor da angústia. Um desassossego. Sombras.

Haverá alguém capaz de amar tudo e todos, incondicionalmente? Como o Sol, que ilumina o mundo, pessoas boas, más, assim-assim, pessoas em guerra, em paz, eu sei lá!

O psicólogo pediu-lhe que escrevesse uma carta aos pais em nome da criança magoada que ainda existia nela. Negligenciada ao extremo, acreditava que só o Sol reconhecia a sua existência. Recebia os seus raios, qual carícia a amornar os sonhos que acalentava. Queria ser livre. Livre para amar e ser amada.

Dia após dia, essa presença majestosa alimentava a ardente ânsia. Cresceu. Tornou-se adulta. Perturbada. Ainda mal-amada.  

Carregava um fardo demasiado pesado. Não compreendia se o fazia de forma voluntária ou não. O certo é que o guardava como uma relíquia que se esconde dos ladrões. Vivia desconfiada, apreensiva, zangada. «Para quando a liberdade?» — questionava-se amiúde. «E esse passado que não cai!» À noite, as insónias povoadas de teias de aranha, fabricadas com requintados vazios da sua existência, amedrontavam-na. Como se desfazer dessa renda obscura que queima e enjoa?

Não há disfarce possível. O espelho tem a mania que sabe: olheiras, cara feia, horror. Suspirava. O alívio espreitava, ao sair de casa, com o companheiro Sol a abraçá-la sem pedir licença. «Cuidado com a minha bagagem.» Isso ele desconsiderava. Sabia que dentro dos porões amarfanhados da mulher havia o sonho de ser livre. Elegante e teimoso, fazia questão de fazer parte dessa aspiração. 

«Diz-me o psicólogo para despejar esta carga num papel em branco? Desde quando é que as letras curam? Hum…»

Rapidamente o caixote de papéis encheu-se de lixo. «Mãe, pai, eu odeio-vos…»; «Mãe, pai, eu…» e foram tantas tentativas. Finalmente deslanchou. Escreveu, escreveu, escreveu.

De volta ao psicólogo, um brilho revelava novo olhar. Sem delongas, explicou-se. Falou sem parar:

— Inicialmente, escrevia e deitava fora o papel. Continuei. Enquanto atirava a folha para o lixo, recordava-me de coisas. Escrevia de novo. Chorei. Chorei muito. E sabe do que mais me lembrava? Do Sol. Do meu amigo Sol. Questionava-me sobre o porquê dele iluminar tudo e todos. Até os maus. E dei-me conta da resposta. Quer ouvir, doutor? Eu acho que ele despe tudo e só vê a essência. A essência é pura, é positiva, é… Uau! E a casca que a envolve é dura, insensível. Reconheci a necessidade de a romper e encontrar a força que eu temia agarrar. Ah! Percebi por que razão não tinha desistido de mim, de me iluminar e aquecer. Foi aí que me perguntei: será que os meus pais estavam tão carregados, ignorantes da verdadeira essência, que se tornaram cegos? Sabe, doutor, perdoei…perdoei, perdoei, perdoei mesmo. Estou bem.

— Continue a escrever — disse o psicólogo. — É libertador.

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AUTOR(A)
Manuela Vieira

Manuela Vieira é mãe e avó. Com raízes africanas, desde cedo se interessou pelo estudo da espiritualidade, na busca de uma visão mais ampla do Homem, entendendo-o para além daquilo que ele é numa existência. Colabora com a Federação Espírita Portuguesa, com quem publicou uma série de coleções de livros infantojuvenis que integram o programa para a educação espírita em Portugal.

Licenciada em Educação Física e Desporto pela Universidade Central da Cultura Física de Moscovo; Pós-graduação em Parentalidade e Educação Positivas pela escola da Parentalidade e Educação Positivas de Magda Gomes Dias.

Trabalha na área da educação, onde abraça com destemor um evento anual, que reúne as diferentes gerações, num conceito diferenciado daquilo que é o desporto escolar em Portugal.

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