Por vezes, na busca da verdade, a pessoa esconde-se e ficciona-se.
Sue oculta-se na sombra da sua metáfora, a voraz Susan Sontag.
“A «verdadeira eu», a inerte. Aquela de quem fujo, em parte, estando com outras pessoas. A lesma. Aquela que dorme e quando acorda está continuamente com fome. Aquela que não gosta de tomar banho e não sabe dançar. Aquela que gosta de ir ao cinema. Aquela que rói as unhas. Chamem-lhe Sue.”
David Rieff filtrou o indizível do dizível e criou um cânone de todos os diários e apontamentos da sua mãe. São cerca de 100 cadernos reduzidos a um livro. Fica a grande dúvida: O que haverá de tão perturbante na parte, na maior parte, que não foi publicada?
Optou por ser ele o editor, apesar de preferir não saber e que outros não soubessem.
A (sua) mãe não deixou qualquer instrução sobre os textos, escritos por ela própria (compreendem o período de 47 — 63).
Susan Sontag nasceu em 1933 e morreu em 2004 de síndrome mielodisplásica (cancro do sangue). Assim sendo, esses textos cobrem desde a adolescência até ser jovem adulta.
“Renascer — diários e apontamentos” (Quetzal) espelha a face escondida da intimidade. Por dentro do ícone cultural, existe muita fragilidade. A sexualidade era um assunto a evitar a qualquer custo; Susan não conversava sobre a sua vergonha. No entanto, os diários são o reverso dessa figura entusiasmante, impulsiva e vulcânica.
No prefácio, as palavras do filho são certeiras: “Ela estava tão pouco à vontade com o seu corpo como serena na sua mente.”
A mente era o refúgio perfeito. Enquanto estivesse entregue à literatura, pintura, música e fotografia não pensava no desencontro consigo própria ou com a mãe (relação que viria a marcar) a cadência da sua vida, ou com o filho e amantes.
Sontag, a poderosa metáfora, era como se fosse omnipresente: movida a anfetaminas, lia em invejável qualidade e quantidade, assistia a estreias de filmes, peças de teatro, óperas e exposições; a vida social era intensa e o sexo (como a comida) parecia nunca ser suficiente.
A mulher sofria com o abandono, humilhava-se nas relações, mas também rebaixava e maltratava. Tinha uma fome emocional impossível de amainar. A própria diagnosticou a clivagem entre uma e outra: “A minha escrita [de ficção] é sempre sobre dissociação — «eu» e «a coisa».”
Apesar de falar na terceira pessoa, tanto na ficção como no ensaio, muito revelou no subtexto. Mas não tanto como nos seus diários.
Depois da publicação, os amigos próximos ficaram surpreendidos com as fragilidades deste monólito cultural capaz de desafiar os mais instruídos desde precoce idade.
Se culturalmente parecia imbatível, emocionalmente era formada por pedaços mal encaixados.
“Renascer — diários e apontamentos” revela as incoerências de uma figura fascinante na cultura do século XX.