Autor(a):

Teresa Dangerfield

ROSABELA

O Senhor Marcelino chegou com dois vasos de malmequeres. E se os deixasse  alinhados junto aos das roseiras e dos gerânios? Ou se os plantasse no canteiro? Tinha lá hortênsias, petúnias, begónias, amores-perfeitos e até um rododendro, mas ainda havia um espaço livre. Decidiu que aí ficariam mesmo bem.

— Olá, eu sou o Malmo, e esta é a minha família — disse o mais alto e o mais farfalhudo dos malmequeres, apresentando-se às outras plantas.

Ouviu-se um burburinho. Malmo ficou sem perceber nada, mas reparou num vaso com uma rosa como nunca vira antes, mesmo perto dele. Perguntou-lhe:

— Como te chamas? Estás aqui há muito tempo?

A rosa fechou as pétalas com força. Mudou de cor e disse, quase sem se ouvir:

— Olá, sou a Rosabela. Fui a primeira a vir para aqui, há… bastantes luas.

— Olha que giro! Nunca tinha visto uma rosa que mudasse de cor! Gosto do teu nome. O teu caule é interessante: sem espinhos e tão… diferente. Que fixe! Aposto que és bem forte: não deve haver vento que te dobre facilmente.

Ouviram-se risadinhas, vindas do lado dos amores-perfeitos. Rosabela, que era normalmente cor-de-rosa, já estava quase vermelha.

— Quem se está a rir? — perguntou Malmo com voz de pai zangado. ­—Olhem que eu não estou para brincadeiras, sim? Respeitinho!

Ficou tudo em silêncio. Os outros malmequeres sabiam bem que Malmo não gostava que troçassem, fosse de quem fosse. Rosabela iria precisar de uma pequena ajuda.

  • ­Conta-nos como vieste parar aqui — insistiu
  • Quando o Senhor Marcelino — que foi quem vos trouxe hoje — veio para

esta casa, não havia plantas no jardim. Um dia foi à vila e havia uma  feira. Eu estava lá à venda. Ninguém me queria, porque sou diferente. As pessoas olhavam para mim e diziam coisas feias. Tão feias que nem quero repetir.

            — Nem precisas de contar o resto. O Senhor Marcelino viu-te e gostou de ti. Viu que és diferente; és mesmo linda! E não vale mudares de cor por eu dizer isto, porque é verdade.

  • Dizes coisas tão… tão bonitas,
  • Olha, nunca tinha conhecido uma rosa como tu. És o máximo!

            — Obrigada, Malmo. Sabes, o que eu queria mesmo? Era conhecer outras como eu. Ouvi dizer que há mais rosas assim: diferentes.

  • Mas não te esqueças de que somos todos únicos e especiais.

            A conversa animou-se: todos quiseram contar as suas histórias. Malmo teve de metê-los na ordem, em especial os amores-perfeitos, que se achavam os melhores.

            No dia seguinte, o Senhor Marcelino veio ao jardim mais cedo do que o habitual. Pegou no vaso onde estava Rosabela e levou-o consigo. Todas as plantas ficaram agitadas. Rosabela fechou as suas pétalas com muita força.

Já dentro de casa, o Senhor Marcelino limpou muito bem o vaso com a sua rosa preferida, e colocou-o dentro de uma caixa de papelão. Com muito cuidado, foi pôr tudo na parte de trás da sua carrinha. A vizinha do lado, curiosa como era, viu-o sair e veio cumprimentá-lo:

            — Bom dia, Marcelino. Estou a ver que leva uma rosa: vai a alguma festa?

            — Bom dia, Hermengarda. Então a senhora — que sabe sempre tudo — não ouviu dizer que hoje vai haver um concurso de rosas numa vila que fica a poucos quilómetros daqui? Não me lembro do nome, sabe como é esta minha memória, mas tenho para ali o folheto. Soube ontem, quando fui ao centro de jardinagem. Pensei logo na minha Rosabela. Ainda assim, é por aí uma hora de caminho. Olhe, vou tentar.

            — Ah, pois… essa. Boa sorte então — disse ela ao Senhor Marcelino. Mas assim que ele entrou na carrinha, continuou entredentes: “Com uma rosa daquelas,  o que é que ele pensa?”

            Agora que sabia para onde ia, Rosabela sentia-se super feliz.

            O Senhor Marcelino precisava de estar no local do concurso às duas horas da tarde. Saíra de casa bastante cedo, pois conduzia devagar. Começou a notar que o céu estava a ficar carregado de nuvens. Daí a pouco chovia tanto, que era difícil ver a estrada. O vento soprava com imensa força: parecia uma tempestade.

Rosabela ficou um pouco assustada quando a carrinha começou a abanar. De repente, uma corrente de ar abriu a porta de trás. A caixa onde estava o vaso foi deslizando, deslizando, e acabou por cair e ser arrastada até à berma da estrada. O Senhor Marcelino não deu conta do que se estava a passar. Avistou uma estação de serviço e resolveu parar. Quando saiu da carrinha, viu que a porta de trás estava aberta: o seu coração começou a bater com muita força. Percebeu o que acontecera e deitou as mãos à cabeça. Começou a andar de um lado para o outro, enquanto falava sozinho:

  • Deve ter caído por aí e eu nem reparei. A culpa foi minha: de certeza que

não fechei bem a porta. Devia ter tido mais cuidado. E se a roubaram? E se foi atropelada? A minha Rosabela! Tenho que voltar para trás. Não há tempo a perder!

Com o vento, a caixa voara para longe. O vaso rachara-se e estava tombado à beira da estrada. Mas Rosabela era forte e não tinha sido puxada para fora da terra. Fechou as suas pétalas com muita força, como era costume. Desta vez, quem percebesse, veria que ela estava a chorar.

            Já não chovia e o vento começara a abrandar. Nisto, passou por ali um rapaz de bicicleta. Viu o vaso caído, com a rosa lá dentro. “Esta rosa é estranha, mas a minha mãe gosta tanto de rosas…”, pensou ele. Pegou no vaso e colocou-o no cesto que tinha na parte da frente da bicicleta. Lá se foi a cantarolar. Rosabela continuava de pétalas apertadas com toda a força.

            O Senhor Marcelino conduziu até uma rotunda e voltou para trás, tentando descobrir a sua rosa caída nalgum sítio. Passado pouco tempo, avistou, do outro lado da estrada, um rapaz numa bicicleta: pareceu-lhe ver que ele levava a sua Rosabela. Fez uma travagem brusca. Tinha que tornar a voltar para trás e tentar alcançá-lo. A bicicleta ia mais devagar do que a sua carrinha, por isso pensou que não seria difícil. Só que, quando deu a volta à rotunda, à sua frente estava um enorme trator.

  • Só me faltava isto! — barafustou o Senhor Marcelino.

            O trator andava a passo de caracol. E não era possível ultrapassá-lo. Não adiantava apitar, pois sabia que um trator anda como um trator, não havia nada a fazer. Começou a transpirar: os minutos pareciam-lhe horas.  Estava a ficar cada vez mais nervoso. Felizmente apareceu um cruzamento e o trator virou à esquerda.

  • Até que enfim! — suspirou o Senhor Marcelino.

Não havia sinais da bicicleta. Teria virado à esquerda? À direita? O Senhor Marcelino hesitou, mas como só via campos de um lado e do outro,  resolveu seguir em frente.  Acelerou e pareceu-lhe ver, a alguma distância, o rapaz com a sua Rosabela. Daí a pouco, conseguiu chegar perto dele. Começou a gesticular e a falar na rosa. O rapaz não percebia, mas pensou que o senhor talvez  precisasse de ajuda e resolveu parar. Pararam os dois numa berma. Rosabela ficou muito feliz quando viu o Senhor Marcelino, que explicou tudo a Tomás, assim se chamava o jovem. O vaso estava rachado, mas  a rosa continuava como se nada tivesse acontecido. Tomás ficou contente por a ter reunido ao Senhor Marcelino e encorajou-o a levá-la ao concurso.

Como iam para a mesma vila, o Senhor Marcelino deu boleia a Tomás e ele, depois de pôr a bicicleta dentro da carrinha, ofereceu-se para segurar o vaso e a rosa com todo o cuidado, durante o resto do caminho.

Chegaram muito a tempo. Tomás foi a casa e voltou com a mãe, que trouxe um vaso muito bonito. Entregou-o ao Senhor Marcelino:

— É para pôr lá dentro o seu vaso. A sua rosa merece. O Tomás contou-me o que aconteceu.

Rosabela estava muito atenta a tudo o que se passava à sua volta. Parecia-lhe um sonho. Havia tantas rosas, de cores e perfumes tão variados. Umas maiores, outras mais pequenas, tão pequenas que até lhes chamavam rosas em miniatura.  Até ouviu falar em rosas japonesas. Cada uma tinha o seu lugar.  Ela estava entre as chamadas rosas de variedades inéditas. Não percebia bem o que isso queria dizer, mas parecia-lhe que eram rosas diferentes, únicas! Não havia nenhuma com o caule tão grosso como o dela, mas havia outras com duas cores, algumas de pétalas com feitios diferentes. Quem passava dizia coisas bonitas. Quando Rosabela mudava de cor, todos ficavam deslumbrados. Sentia-se mesmo especial.

Ao fim da tarde, o  júri anunciou os vencedores nas diversas categorias. Até havia um prémio para a rosa mais perfumada. Ninguém podia duvidar dessa escolha, pois tinha realmente um perfume de causar inveja. Chegou a vez das rosas inéditas. Houve um empate de pontos entre Rosabela e Rosibranca, uma rosa de duas cores. O júri resolveu dar o prémio às duas, em igualdade. Isso mesmo, vencedoras na Categoria de Rosas Inéditas, em igualdade! Rosabela nem queria acreditar! Não poderia estar mais feliz!

Vieram dar os Parabéns ao Senhor Marcelino e a senhora que trouxera Rosibranca disse-lhe  que todos os anos havia um concurso internacional de rosas em Barcelona, no mês de maio; ela iria levar lá a sua rosa. O Senhor Marcelino teria de pensar nisso, para o próximo ano. Quando contasse tudo aos filhos e aos netos, nem iriam acreditar. Agradeceu muito ao Tomás e à mãe, despediu-se e partiu, cheio de orgulho na sua rosa, que recebera uma medalha em forma de flor. Quanto a Rosabela, estava ansiosa por voltar a casa e contar tudo aos seus amigos.

Chegaram quase ao anoitecer. Hermengarda estava a espreitar por detrás das cortinas. Mal viu a medalha, encolheu os ombros e fez uma careta.

Quando o Senhor Marcelino voltou a pôr Rosabela no jardim, quem conseguisse perceber o que as plantas dizem, teria ouvido, quase imediatamente, Malmo: “Rosabela, que te aconteceu? Vens mais bonita. Tens um vaso novo! E essa medalha!”; logo de seguida, um coro de vozes, vindo de todos os lados: “Rosabela, Rosabela, ainda bem que voltaste! Sentimos a tua falta!”; e, finalmente, Rosabela, que mais parecia uma estrela a brilhar na Terra: “Nem imaginam o que tenho para vos contar!”

Partilhe:
AUTOR(A)
Teresa Dangerfield

Teresa Dangerfield nasceu em Lisboa, em 1956. É Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas (Português e Inglês), pela Universidade Clássica de Lisboa e Mestre em Tradução, pela Universidade de Bristol (RU). Foi docente do Ensino de Português no Reino Unido, onde reside há mais de 30 anos.  Foi também Docente de Apoio Pedagógico na Coordenação do Ensino Português no Reino Unido. É tradutora e dedica-se à escrita, uma paixão que a acompanha desde a infância. Para além das publicações na revista Palavrar, tem contos e alguns poemas integrados em coletâneas.

MAIS ARTIGOS