O silêncio era cúmplice da escuridão e ambos seguiam de perto o desejo ansioso dos passos de Salvador, entre corrimões de videiras despidas e terrenos baldios. Um silvo cortou o ar e ele, de pronto, meteu a mão no bolso. A pistola de alarme dava-lhe alguma segurança, mas não desvanecia o medo. Apurou o ouvido e perscrutou o terreno em redor para se fixar nos olhos de uma coruja no ramo de uma carvalha. Parecia que o questionava «Que fazes aqui a estas horas? Até quando vais continuar nisto?». Ignorou e seguiu caminho. A respiração tornara-se mais ofegante e o seu bafo largava pequenas nuvens no ar. Apesar da temperatura baixa, não sentia frio. Sob os seus pés estalavam ramos e folhas. Firmou ainda mais a passada, antecipando o prémio daquela empreitada noturna.
O coração pulou ao avistar a pequena casa caiada de branco entre os pinheiros. Observou a área e não viu o carro dele. A luz acesa no quarto com a persiana fechada até meio era o sinal combinado para avançar. Sacudiu as botas, passou as mãos pelos cabelos cor de avelã e compôs o casaco. Caminhou em direção à casa. Parou em frente à porta, levantou a mão direita fechada e fez soar duas pancadas secas. O calor escalou-lhe a coluna e as calças reprimiam o desejo que crescia, provocando um desconforto prazeroso.
Ela abriu e puxou-o, bebendo-lhe um longo beijo, enquanto o conduzia para o quarto, trancando a porta atrás de si. Num ápice, as roupas estavam no chão e eles buscavam-se como quem procura água no deserto. Ela deixou-se desabrochar, ávida de o sentir entrar, ele não pensava em outra coisa e assim fez. Vezes repetidas silenciou o gozo, não podia ser ouvida pelo filho que, alheio a tudo, dormia tranquilo no quarto ao lado. Depois, repousaram os corpos nos lençóis exaustos. Em silêncio, Salvador soltou-se daquele abraço viciante. Os pés arrepiaram-se ao tocar o chão. Vestiu-se e saiu cauteloso. Apertou o casaco e meteu as mãos nos bolsos.
Nova passagem pelas vinhas e pelos terrenos baldios. Para seu espanto, reencontrou a coruja, no mesmo ramo da carvalha, com as perguntas ainda em suspenso no olhar. «Maldito bicho! Não és o símbolo da sabedoria? Então encontra as respostas sozinho!». Ainda o pensamento não havia terminado, sentiu que se enterrava em lama. «Só faltava mais esta!» Bateu os pés ao som do piar da coruja, todavia não se libertou da sujidade da alma.
Entrou no carro, ligou a ignição e esperou que os vidros desembaciassem. Uma música romântica conquistou-lhe os sentidos e o seu pensamento voou até Anabela. «Será que ele já chegou? Estará a abraçá-la, a beijá-la? Não, não!». Não podia pensar nisso que logo o coração acelerava e o calor subia ao rosto. Pegou no telemóvel e escreveu «Amo-te tanto, meu amor, és tudo para mim. Já tenho saudades tuas.» A resposta não tardou: «Também te amo muito! És tudo para mim! O meu coração vai ser para sempre teu!» Saboreou com prazer aquela mensagem e arrancou. De olhos fixos na estrada, as duas mãos no volante, recostado no acento, acelerou e fez as mudanças deslizarem de tal forma que em breves minutos estava a atingir os cento e vinte quilómetros à hora. Embriagado pela adrenalina e pelo poder, dir-se-ia que o Volkswagen Golf GTI Mk2 levantava voo, não denunciando os anos que tinha.
Chegou a casa. Silêncio. Descalçou-se e foi tomar um duche rápido. Meteu-se na cama. Gabriela dormia. Fechou os olhos, na tentativa de adormecer. Ela mexeu-se e ele sentiu as suas pernas nuas e macias. Começou a percorrer-lhe o corpo numa carícia faminta. Meio desperta, ela deixou-se ir naquele embalo e saciou-o.
Quando acordou, Gabriela já tinha saído. Afagou a almofada que guardava ainda o seu perfume e sorriu. «O que mais pode querer um homem?!» Pegou no telemóvel e enviou uma mensagem «Bom dia, amor!». Anabela rapidamente retribuiu. «Bom dia, amor! Só penso em estar contigo!». Quando ia responder, uma chamada impediu-o. Atendeu. «Tem de estar pronto no próximo sábado, sem falta!» Mais do mesmo. Precisava de concluir aquele trabalho, não podia continuar a adiar. Foi para o ateliê decidido a avançar. Vestiu a bata, calçou as luvas e olhou com satisfação para o móvel. «Sem dúvida que está a ficar bonito!» Ia inclinar-se para retocar uma porta, quando um pensamento se precipitou. «Esqueci-me completamente da consulta com o naturopata!» E largou tudo.
Decidira procurar alternativas para aquele estado que oscilava entre a depressão e a euforia. Gostara do primeiro encontro, por isso, lançou-se à estrada para não perder a consulta. Agora, de regresso, recordava o tom perentório com que Jorge lhe falara «Ou tomas uma atitude e fazes alguma coisa por ti ou escusas de cá voltar!».
Parecia que o céu se ia desfazer em água. O limpa-vidros no máximo não garantia boa visibilidade. Resolveu encostar. Ali, na berma da estrada, ao som da chuva, o olhar perdeu-se para além do horizonte. Recordou a coruja da noite anterior. «O que ando eu a fazer? Esta vontade não me larga… A Anabela é um espetáculo, as coisas que nós fazemos! Até o perigo do marido descobrir me excita! E a Gabriela? Se ela sonha, coitada! Tão boa rapariga… podia ser melhor na cama, é verdade, mas pronto! Não se pode ter tudo… Ainda bem que vivo no apartamento dela, afinal, é menos uma despesa. Dinheiro, dinheiro! Tanta falta que ele me faz! Quando é que isto vai acabar? O trabalho em atraso… e os clientes estão a perder a paciência. Mas eu não resisto, preciso de estar com a Anabela… Serei viciado em sexo? Não! Qual é o problema de gostar de mulheres? Elas também gostam… Mas por que sinto este vazio? Eu até sou perfeito e dedicado ao que faço. Se quisesse, tinha a casa cheia de clientes… Mas eles estão a desaparecer… o trabalho fica sempre para trás, estas saídas para me encontrar com a Anabela, os motéis, as refeições, o gasóleo… quando dou por ela, já o dinheiro se foi… O Jorge tem razão. Tenho de tomar uma atitude. Preciso de sair disto. Mas como?» Deitou as mãos à cabeça e recostou-se no banco. Através do tejadilho, as nuvens pintavam-lhe os olhos de um cinzento carregado. «E se a chuva levasse todos estes problemas? Como seria a minha vida? O que quero para a minha vida?» Admirou-se mais com o facto de estar a questionar-se a si mesmo do que com as perguntas. O som da chuva a cair captou toda a sua atenção, parecia-lhe ouvir música… Recordou as palavras do pai, tantas vezes repetidas: «Os músicos são uns vagabundos! Não são canções que põem pão na mesa!». «Como eu gostava de ter aprendido a tocar guitarra… Mas foi o meu irmão que recebeu uma para nunca a usar…» Um nó amordaçou-lhe a garganta… Vá deixa-te lá dessas coisas! Já passou! Não é agora que vais aprender a tocar guitarra! Vai mas é trabalhar, que é o melhor que tens a fazer!»
A chuva abrandou e Salvador retomou a viagem até ao ateliê. Foi à caixa do correio. Entre cartas e publicidades, deteve o olhar num folheto que anunciava aulas de música para todas as idades. Separou as cartas e pôs os folhetos publicitários no cesto dos papéis. Retomou o trabalho. Um toque. Passados breves minutos, outro toque. Coçou a cabeça. «É ela.» Tirou as luvas e ligou. O corpo deleitava-se com aquela voz e tinha sede dos beijos que se lhe ofereciam. «Tenho de a ver!» E, sem pensar, tirou a bata e meteu-se no carro. Ela já o esperava. Enquanto conduzia, as mãos dela passeavam-lhe pela perna, acendendo o fogo que já os consumia. Acelerou ainda mais e, rapidamente, entrou no estreito caminho de terra batida. No carro, escondidos pelas árvores, mataram a fome, mataram a sede e tudo o mais que sentiam. Deixou-a no sítio onde a apanhara. O corpo estava satisfeito, contudo a alma, essa, agitava-se inquieta e, pela segunda vez naquele dia, a chuva cantou para ele.
Foi nessa mesma noite que teve pela primeira vez aquele sonho. No início, ignorou-o, no entanto, aquela imagem, pouco a pouco, instalou-se na sua vida ao ponto de, cada vez com mais frequência, surgir nos momentos mais acesos com a Anabela. Quando isso acontecia, murchava. Ela não aceitava e procurava atiçar o fogo. Ele, não querendo dar parte de fraco, incandescia-se.
Aquele romance era, cada vez mais, uma lâmpada em vias de se fundir, oscilando entre a luz e a sombra. Ela continuava a ligar. Salvador, de olhar indiferente para o visor do telemóvel, pensava: «Isto já não me diz nada… deixa-me em paz!» — e continuava a lixar o armário que tinha diante de si ou a aplicar o verniz com cuidado. Também ali, a mesma imagem lhe vinha à ideia. Sem perceber bem porquê, alegrava-se com ela e isso refletia-se nos seus trabalhos de restauro.
Certo dia, entrou no ateliê um cliente novo com uma guitarra antiga. Salvador nunca fizera um trabalho daquele tipo e hesitou. Mas o homem tinha a certeza de que ele era a pessoa certa para dar nova vida àquele objeto, sem brilho e repleto de riscos. Quando ficou sozinho, fez soar as duas cordas que ela ainda conservava. Segurou-a pelo braço e contornou-lhe o corpo. «Vais ficar como nova!» pensou, confiante.
O restauro da guitarra ocupou-o durante alguns dias. Depois de a limpar, passou-lhe uma lixa fina para retirar todo o verniz, ou o que sobrara dele, passou-lhe óleo de coronha, depois cera de abelha e de novo o óleo de coronha. A imagem do sonho fazia-lhe companhia, inspirando-o e motivando-o. Quando terminou, olhou com satisfação para o resultado.
Durante todo aquele tempo, nem pensou na Anabela e recusou os convites insistentes que ela continuava a fazer-lhe. Após cada consulta, acreditava cada vez mais que conseguiria pôr um fim definitivo àquele relacionamento e dar um rumo melhor à sua vida. Apesar de não amar Gabriela, sentia-se bem ao seu lado. E o sonho, noite após noite, trazia-lhe algo que não conseguia definir.
O cliente da guitarra nunca mais apareceu, nem atendia o telefone. Salvador, cansado de a ver sem vida, pegou nela e procurou uma loja de música. Veio de lá com ela num saco próprio e com um folheto. «Aulas de música para todas as idades… Já tinha visto isto…» recordou e, desta vez, guardou o papel. Sentou-se, pegou na guitarra e passou os dedos pelas cordas. Os ouvidos sorriram e a alma cantou. À noite, o mesmo sonho.
No dia seguinte, regressou à loja, desta vez para começar a aprender música. Quando entrou na sala de aula, o coração começou a bater-lhe mais rápido. Sentada de costas, a mesma figura do seu sonho tocava guitarra com uma graça tal que deixou cair o maxilar. Os mesmos cabelos longos e negros. «Andei a sonhar com a professora de música? É ela a mulher do meu sonho! Aquela que toca num palco para uma multidão rendida ao seu encanto, no momento em que também eu me preparo para entrar em palco e fazer-lhe companhia. Nunca consegui ver-lhe o rosto, porque acordo antes. É ela! É real! Até tem uma blusa branca como no sonho!»
— Sou o Salvador e inscrevi-me nas aulas de guitarra! — anunciou.
No momento em que ela se virou e sorriu para ele, ambos souberam que nascia ali um caminho que trilhariam juntos.