Há sempre um ponto de partida e de chegada quando se conjuga a palavra vida. Se descartarmos a primeira letra entendemos que nela está implícita apenas uma direção, um horizonte sem retorno que nos instiga a avançar até que a nossa existência cesse.
Ao longo da estrada que se estreia com o nascimento e se extingue quando a morte nos acolhe na sua morada, reconhecemo-nos como seres em continuidade. Vamo-nos tornando quem somos, aprendendo, crescendo e tomando as nossas próprias decisões. Mas também já estamos alinhavados, sem grande margem para manusear as escolhas que fazemos, porque habitamos um momento histórico, submetemo-nos às gramáticas sociais dos que estão próximo, apropriamo-nos da herança de um mundo desenhado antes de nós, por quem nele viveu e partilhou o seu saber, sem exigir o nosso esforço. É como se existíssemos de duas formas em simultâneo.
Surgimos a partir do outro e esse processo persegue-nos ao longo da vida. Cada um de nós é formado por milhares de outros que, por sorte ou por azar, participaram nessa construção e são parte do que somos e do que pensamos. Porque o sentido da vida humana não se resume a um monólogo, mas resulta da incessante multiplicidade de vozes e silêncios da multidão que connosco se cruza e do legado dos que já desapareceram.
É essencial a intervenção do outro para que as nossas vidas sejam exploradas na sua plenitude, com um propósito que nos permite experienciar tudo o que o mundo está disposto a conceder. Mas reconhecer e aceitar essa necessidade é arriscado, e pode ser perigoso. Deixa-nos expostos, vulneráveis, subjugados à aceitação do outro, cuja presença nos pode acrescentar valor ou abandonar-nos às portas do inferno.
Há quem prefira entregar-se ao egoísmo ou à cobardia, numa rejeição que proíbe a criação de vínculos durante uma vida inteira, em que os sentimentos são banalizados e os compromissos descartados, transportando corações que morrem sem emoção porque não autorizam o toque para além da superfície. Não se atrevem a semear os terrenos que atravessam, nem a colher deméritos, méritos e outras virtudes de quem tem vontade de os abraçar. Viajam carregados de medos, angústias e frustrações; calam desejos e aspirações, elegendo o conforto de uma vida acética, num entorpecimento que evita o risco de se verem desnudar perante terceiros, ignorando que é através deles que vem o conhecimento sobre si mesmos.
Imersos na supremacia da independência, carregam a cultura do individualismo e o espírito hedonista, que desaprova a humildade capaz de reconhecer que são as relações duradouras que nos atestam a alma, e que o fascínio da conjugação do verbo viver não está num corpo oco e desabitado.
São os outros que vestem a primeira letra da palavra vida. São eles que nos preenchem. São os outros que nos dão vida!