Júlia olha de relance para o relógio. É cedíssimo. Nos últimos tempos, as insónias não lhe dão tréguas. Fecha os olhos, na esperança de que o sono a volte a embalar, mas sem sucesso. Tem horror a ficar na cama às reviravoltas e, por isso, rende-se. Espreguiça-se demoradamente e vai até à janela, já com uma chávena de chá na mão. Deixa-se seduzir pelas estrelas que cintilam no céu e contempla a calma que emana do Tejo. Ainda todos dormem. Todos, menos ela.
Ciranda pela casa e repara, por acaso, no livro que, pousado sobre a mesa da sala, a espera há já vários dias. Pega nele e folheia-o. Não tem o hábito de guardar os livros já lidos. “Para quê deixá-los a acumular pó, quando podem andar de mão em mão? Apenas para enaltecer o ego? Apenas para exibir estantes repletas de lombadas?”, costuma dizer aos amigos, em tom provocador. No entanto, o livro que agora tem nas mãos é especial. Lera-o há muitos anos e marcara-a de tal forma que havia prometido a si mesma voltar, um dia, a saboreá-lo.
Relê os primeiros parágrafos, mas a sua inquietude imiscui-se sem pudor, empurrando o significado das palavras para lugares longínquos. Quer entregar-se à história. Porém, mais não vê do que uma imensidão de letras sem sentido. Resignada, abandona-o.
— Vou até à praia, caminhar à beira-mar… É disso que estou a precisar — sussurra ao gato que, enroscado ao seu lado, a olha de soslaio sem perceber porque está a dona acordada àquela hora.
Não há trânsito. Atravessar a cidade sem filas intermináveis e buzinadelas ensurdecedoras é uma delícia. Ao entrar na Marginal, aumenta o volume do rádio. Que bom é ver o mar! Avança sem pressa, sentindo o vento a entrelaçar-se nos cabelos.
Está um dia lindo. Os primeiros raios de sol surgem no horizonte. Ao chegar à praia, descalça-se e conquista o areal. “Poetisa-me na areia” lê-se num dos muros do paredão. Sorri. “Que doce neologismo”, pensa. Caminha à beira-mar, gozando o prazer de uma solidão que, de incómoda, não tem nada.
Avista, ao longe, uns pontinhos minúsculos que ganham forma à medida que se aproxima. Afinal não foi a única a madrugar. Uma série de pessoas, sentadas em posição flor de lótus, estão reunidas em círculo. Meditam. Júlia não resiste à tentação de parar para contemplar as suas expressões e, pouco a pouco, contagiada pela serenidade que delas emana, sente-se liberta dos resquícios da ansiedade deixados pela insónia. Um molho de sapatos atrai a sua atenção. Observa-os durante uns segundos. Os seus fiéis companheiros estão naquele momento ocupados a planar numa dimensão zen.
“Os ténis estilosos são, sem dúvida, daquele morenaço de cortar a respiração!”, pensa. “E aquelas sandálias… só podem ser da rapariga que tem uma fita amarela na cabeça. Aposto que nunca sai de casa sem condizer a roupa com o que calça. Os chinelos de praia devem ser da miúda de tranças. Aparenta ser mesmo boa onda. E aqueles outros, que terror!!! Quem poderá querer andar nuns tais horrores?! São certamente da rapariga cujos brincos e anéis brilham sem uma pitada de piedade por quem se senta ao seu lado.”
Júlia diverte-se a adivinhar a quem pertence cada par de sapatos, enquanto o grupo se mantém imóvel e em silêncio. É então que o seu olhar se detém nuns sapatos pretos de salto alto. “Que lindos! Adoro! Elegantes e sexy! Tão parecidos com uns que tive quando era mais nova, quando ainda acreditava que a vida iria ser fácil… Mas quem é que vem para a praia com uns sapatos destes?”, comenta para si própria.
Perscruta o grupo, em busca da potencial dona. “Talvez sejam daquela mulher que tem uma túnica preta. Um bocado convencida, não? Porque está ela a meditar de óculos escuros?…”
De repente, cai em si. Sente-se envergonhada e abafa os seus pensamentos. “Como é fácil tecer mil e uma conjeturas sobre os outros quando nada se sabe sobre eles. Como é fácil julgar apenas pela aparência. Como é fácil comentar pequenos nadas que só poderão ganhar sentido quando se conhece o caminho e quem o percorre.” Engole em seco.
Sente-se, de novo, inquieta. O aperto no peito está de volta. Não consegue desviar o olhar do par de sapatos de salto alto. Fecha os olhos e, numa tentativa de se redimir dos seus pensamentos irrefletidos, imagina-se a calçar a vida daquela mulher que lhe é, na verdade, uma mera desconhecida. Uma rajada de vento fortíssima apanha-a desprevenida. Os cabelos voam num rebuliço e a areia fustiga-lhe a pele. Assustada, abre os olhos e constata, com espanto, que o dia continua sereno.
O grupo está já a mover-se lentamente, como se estivesse a regressar à vida. Júlia respira fundo e, sem hesitar, volta a calçar, na sua imaginação, os sapatos de salto alto. Assim que entra neles, é sacudida por um novo golpe de vento, este ainda mais violento do que o anterior. Tenta resistir-lhe, mas a areia esbofeteia-a sem piedade, empurra-a, arranca-lhe a pele, rouba-lhe o chão. De repente, o rosto de uma mulher, em lágrimas, surge à sua frente. Ao vê-la, sente no peito uma dor profunda que a impele a libertar-se daqueles sapatos cujos passos não são os seus.
O momento zen já terminara e o grupo havia começado a dispersar. “Nãooooo!!! Onde está a dona dos sapatos de salto alto?” Júlia tem o coração num turbilhão. Não faz ideia do significado do que acabara de acontecer, mas ignorar o sucedido está fora de questão. Um homem de cabelos brancos calça os ténis estilosos e a miúda das tranças enfia-se nos sapatos que antes apelidara de “terrores”. “Julgamentos fúteis os meus!”
De repente, vê a mulher da túnica a aproximar-se. Não consegue ler-lhe a expressão, pois ela continua de óculos escuros. A mulher baixa-se e pega nos sapatos pretos de salto alto. “É ela!!! Tenho de lhe falar! Mas… o que hei de dizer? Que uma rajada de vento quase me arrastou pelos mares quando me vi nos sapatos dela? Vai achar que sou louca!”
Júlia hesita. Vê a mulher a afastar-se rumo ao paredão e, inesperadamente, a perder o equilíbrio e a cair. Tudo o que lhe pertence se espalha pela areia e os óculos escuros saltam-lhe do rosto. Sem pensar, Júlia corre ao seu encontro. Ajuda-a a levantar-se e é nesse momento que os olhares de ambas se cruzam. Fixam-se durante breves segundos, sem trocarem uma só palavra. O olhar da desconhecida, envolvido numas olheiras ferozes, atinge Júlia como uma bala. Dele emana uma tristeza profunda, uma desesperança aflitiva que se perde no vazio.
Júlia balbucia umas quantas palavras desajeitadas e, numa calma encenada, comenta:
— Adoro os seus sapatos! Tive uns muito parecidos quando ainda conseguia andar de salto alto.
— Eram da minha irmã… — responde a desconhecida, numa espécie de sussurro.
— São lindíssimos! A sua irmã é certamente uma mulher de bom gosto! Eu sou a Júlia. Deixe-me ajudá-la a apanhar as suas coisas.
— Obrigada. Eu sou a Sofia…
Segue-se um silêncio. “Por favor, diz qualquer coisa!”, pede Júlia em pensamento, mas a sua súplica não é ouvida e, por isso, arrisca-se a dizer:
— E os brincos… também foram um presente da sua irmã? São tão bonitos! Uns corações dentro de umas estrelas… parecem estar envoltos num abraço eterno.
De súbito, os olhos de Sofia enchem-se de lágrimas.
— Desculpe!!! Disse algo que não devia?
Sofia não responde.
— Posso oferecer-lhe um café? Ou… um jantar, esta noite?… Não me pergunte como, mas sei que não está bem…
— Tenho de ir. O meu filho está à minha espera.
— Ligue-me… Podemos apenas conversar — insiste Júlia enquanto escreve o seu número de telemóvel num papel.
É, no entanto, interrompida, ainda antes de terminar.
— Júlia!!! És mesmo tu! Que fazes por aqui?
“Ohhhh não! Não pode ser! Não agora!”, exclama Júlia para si própria, ao ver Guilherme à sua frente. Ela e Guilherme haviam partilhado um táxi há pouco tempo, numa tarde de tempestade. Júlia nunca andava de táxi e ainda menos com desconhecidos, mas, naquele dia, o temporal era tal que ou se enfiava no único táxi livre das redondezas ou se arriscava a ficar sem roupa no meio da rua. Havia estado quase três quartos de hora presa no trânsito com aquele homem, mas o que podia ter sido um inferno, tornara-se afinal num encontro inusitado, recheado de gargalhadas. Desde então, haviam trocado um sem número de mensagens, cada vez mais frequentes, mas ainda não tinha surgido o momento certo para um reencontro.
— Tive uma insónia horrível e vim saborear o amanhecer à beira mar. E tu?
— Eu vim espairecer! Já não vinha a esta praia há um montão de anos. Já te disse que não acredito em coincidências, verdade? Por isso… de hoje não passa! Jantamos?
Júlia sente um nó no estômago. Tinha sonhado, vezes sem conta, com aquele momento. Tem a certeza de que todos podem ouvir o batimento descompassado do seu coração e a sua ânsia de gritar “simmmmm”, mas sabe que não pode aceitar. Pousa o olhar em Sofia. Ela sorri-lhe… lê-lhe os pensamentos. Júlia retribui o sorriso. Termina de escrever o número do telemóvel e, só então, se decide a quebrar o silêncio:
— Também não acredito em coincidências. Hoje não posso, Guilherme. Estou à espera de uma chamada importante e quero estar em casa.
Sofia aceita o papel que Júlia lhe estende. Guilherme pressente não ser aquele o momento certo para perguntas, mas, ainda assim, recusa-se a desistir:
— Ok, então se não vamos jantar, vou roubar-te agora para um passeio pela praia. E nem ouses dizer que não!
Júlia deixa-se levar. Finge estar a ser arrastada à força e Sofia esboça um sorriso cúmplice. As duas mulheres trocam um último olhar. Têm a certeza de que nada voltará a ser como antes.
— Liga-me! — grita Júlia.
*
Passam já das dez da noite e o telemóvel continua mudo. Júlia anda de um lado para o outro. Revive as estranhas sensações que tivera na praia quando se tinha imaginado a calçar os sapatos de Sofia.
O sino da igreja badala as onze horas. Júlia não se quer deitar, mas o pouco tempo de sono da noite anterior começa a pesar. Recosta-se no sofá e, sem dar por isso, deixa-se adormecer. Por pouco tempo. O tilintar do telemóvel acorda-a em sobressalto. “Está a tocar!”
— Sim? — responde, sem hesitar.
— Acordei-te? Desculpa…
— Sofia, és tu! Que bom que ligaste!
— Júlia?… Não consigo respirar. A minha irmã morreu há um mês e eu não consigo respirar!
Júlia fica sem palavras. “Nunca mais ouses falar dos outros sem conheceres o emaranhado de fios que enlaça a teia das suas vidas! Nunca mais!”, grita para si mesma. Do outro lado, Sofia respira sofregamente.
— Queres que vá ter contigo? — pergunta Júlia, aflita.
Não obtém resposta…
— Sofia!!! Estás aí?
— Ela não vai voltar e os sapatos de salto alto ficavam-lhe muito melhor a ela do que a mim… Não consigo respirar, Júlia…
— Calma Sofia… calma… respira devagarinho. Eu tenho a noite toda só para ti.
— Não tenho forças para falar…
— Nem precisas! Basta ouvires a minha voz.
Júlia pega no livro da sua juventude. Aquele que, um dia, a enchera de encantamento. Abre-o na primeira página e começa a ler em voz alta, numa cadência pausada e harmoniosa. Ouve a respiração de Sofia a aquietar-se e continua… continua pela noite dentro, continua até de madrugada, segura de que o elo que acabara de nascer naquela noite as iria unir por muito, muito tempo.