sonhos colectivos

Sonhos coletivos

Talvez esteja a sentir-me cansada. E, por isso, deixo que o pensamento fuja para onde bem entender. Dou por mim focada em sonhos coletivos.  Recuo até ao ano 2020, onde claramente se formou um sonho coletivo representado por um arco-íris, pintado em cartazes nas janelas e nas varandas das casas, estampado em t-shirts e em chávenas almoçadeiras. Ora pequeno, ora grande. Presumivelmente, com todas as suas cores, vermelho, laranja, amarelo, verde, azul, anil (ou índigo) e violeta. Sim, tive de fazer uma pesquisa, sei que são sete mas, limitação minha, nem mesmo com esta idade interessante que tenho, sei a ordem das ditas cores. Talvez porque não me lembro de alguma vez ter pintado um arco-íris. O que será que isto diz de mim?

Os tais arco-íris, pululantes por tudo que era sítio, em 2020, tornaram-se raros, alguns meses depois. Cansaram-se. Esbateram-se. Retiraram-se. Talvez porque o sonho que representavam, fosse apenas fruto do pasmo e do medo. Não, não ficámos todos bem. Houve (e ainda há) morte, doença, precariedade, solidão, burnout. Se o arco-íris no céu é um fenómeno ótico, estes arcos-íris em terra, foram, ou são, um fenómeno utópico. Ambos, temporários, transitórios. Porém, no meio de tantos arcos-íris de boas intenções, representando uma esperança em dias isentos de um vírus exportado e importado, por instantes, por uns breves instantes, não só houve esse sonho coletivo de que tudo iria ficar bem (o que não aconteceu), como também houve o sonho coletivo de que nós, seres humanos, seres pensantes, no meio do desaire pandémico, tínhamos a oportunidade de mudarmos, de sermos melhores com os outros e com a nossa casa (entenda-se, planeta). O que também não aconteceu.

Por esses breves instantes, as mentes ficaram mais puras (ou os corações, o que for) e o ambiente, também. Heróis e heroínas, com ou sem licenciatura, sacrificavam-se em prol da sociedade. Vizinhos, até então desconhecidos, ofereceram ajuda. Investigadores, quiçá rivais, uniram-se à procura de uma possível solução. Famílias e amigos, apartados fisicamente, reuniam-se digitalmente. Vamos ficar bem, vamos fazer diferente. Uma espécie de mantra para um mundo melhor. O ar ficou mais limpo de gases. As águas do mar ficaram cristalinas. Os habitantes de grandes metrópoles conseguiram ver o céu azul (mas não o arco-íris, porque, esse, tinha descido à terra, multiplicando-se por tudo o que era sítio). As ruas ficaram mais silenciosas. Até os indianos puderam ver, pela primeira vez em trinta anos, a cordilheira himalaia de Dhauladhar, segundo circulou nas notícias.

Um sonho coletivo, que afinal era uma utopia, com um pesadelo pelo meio. Veio ao de cima o que não é bom, como o azeite em água. Mostrou-se (e mostra-se) o incivismo de muitos. Incivilidade e egoísmo, inevitavelmente juntos. Pensar em si e não nos outros. Reclamar os direitos e desdenhar os deveres. Da corrida ao papel higiénico, às máscaras com o nariz à janela, aos encostos nas filas, às festas clandestinas, ao negacionismo e às teorias da conspiração, ainda mais as máscaras que invadem as águas, concorrendo com plásticos e outros lixos dos seres humanos. Os seres pensantes.  Não nos tornámos melhores, nem com os outros, nem com a nossa casa (entenda-se, outra vez, o nosso planeta). Algum dia seremos melhores do que somos? E com efeitos universais e notórios? Haja esperança. Afinal, os líderes dos G20 conseguiram concordar em limitar o aquecimento global a 1,5ºC. Comprometeram-se a fazer esforços para tal. O quê? Quando? Jogaram, de semblante sorridente, uma moeda na Fontana Di Trevi para dar sorte a este sonho de não nos afogarmos com os abusos ambientais que fazemos.

Tento sair deste azedume onírico em que me sinto a mergulhar e que associo ao cansaço. Travo o pensamento, relembro-lhe que a sua liberdade, tal como a minha e a de todos, não é absoluta, mas sim apenas relativa, há regras, há condições.  Quero animar-me. Exijo ser transportada a sonhos com final feliz. I had a dream. Palavras que arrebataram uma multidão e fizeram a história avançar, ainda assim, pouco, já que, mais de 50 anos depois, ainda sobressai o preconceito da cor. Yes, we can. Reacendeu-se o sonho de muitos, derrubado pouco depois. Comprova-se que a história e a vida são feitas em ziguezagues.

Nesta altura, reparo que fui transportada apenas para sonhos em língua estrangeira. Refreio novamente o pensamento. Aninho-me no sofá, com o aconchego de uma manta. Contemplo o pinheiro (artificial!) enfeitado de bolas e serpentinas a condizer, em tons de rosa chá, acompanhadas por luzinhas vermelhas, amarelas, verdes e azuis, a piscarem à vez. É época de avivar o sonho coletivo de Paz entre todos nós. Todos os anos, as mesmas aspirações. E, neste ano, acresce o sonho “moderno” de que a Covid deixe de estar no meio de nós. Num ou noutro caso, são sonhos sem final feliz à vista.

Claramente, hoje, os pensamentos não estão favoráveis. Estou num círculo que não me leva a lugar nenhum, comecei com a pandemia e termino na (mal)dita.

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AUTOR(A)
Ana Candeias

Ana Candeias nasceu em 1965 na cidade de Lubango, Angola. Licenciou-se em Ciências da Nutrição e Alimentação pela Universidade do Porto. É nutricionista no Centro de Saúde de Olhão e leciona a disciplina de Comunicação no curso de Dietética e Nutrição da Universidade do Algarve. Aos cinquenta e quatro anos, num desusado impulso, permitiu-se iniciar a sua caminhada na escrita criativa cumprindo um sonho por anos abafado. Porque chega um momento em que «se não é agora, será nunca.»

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