I
um dia voltarás ao cafezal. Colherás um a um os bagos que se oferecem
à rubridão da luz. Um a um encherás o saco da desfartura
que ainda volteia
ao redor de teu ventre
e cada bago será o diadema do húmus
e do útero
e da nossa semente infinda
como ginguba semeada em terra prenhe de Uba-Flor
a gamela de madeira há-de gemer de sua abastança
e todo o forro gíkiti se orgulhará de sua gleba
de sua safra Robusta como esperança renascida em cada olhar
Arábica dançará puíta no quintal de Sum Malé
seu quimono de seda sua saia godé seu lenço bôtandji
sua boca frescura de anona e pitanga
voltarás a saborear do fruto o aroma
no café da manhã virgem de cansaços
nas horas lentas de nossa ínsula abençoada
voltarás a serpentear os velhos caminhos do mato
a florear os ramos na estação das chuvas
e tua boca será pequena demais para albergar tanto sorriso
II
deambularás a ocidente e a oriente
do teu nome. Incógnito nome em tua sofrida pequenez arquipelágica
repetirás a exatidão dos gestos
e tua será a vermelhidão dos bagos outrora brancos
em suas infrutescências. Como noiva em seu vestido imaculado
assim florirão teus ramos
assim se mostrarão aos passantes da beira dos caminhos
como o ventre fecundo das mulheres que carregam seus infantes
e o que outrora foi sangue e lágrimas será vida
o que foi mágoa será fruto e será flor
e não mais escarnecerão de tua lustrosa, híbrida pele
III
lembrar-te-ás da ilha aberta ao sul
as primeiras chuvas, os pássaros de fogo, as nossas bocas róseas
o sentir da vida a latejar na ânfora dos nossos mares
lembrar-te-ás da estação em que o vento se embrenha nos sonhos
das virgens mães, tua roupa de verde flora e eritrina e verde fruteira
tua língua crioula rente ao verde pálido de tuas mansas águas
falarás em nome do amor e da rórida penumbra que dissipa o quebranto de nossas promessas
lembrar-te-ás de nossas invencidas mãos na safra de Sum Zêfinho
quintal de muito cacau e muita mágoa e muita solidão
lembrar-te-ás das noites de socopé que nossas velhas mães e avós sempre ritmaram em meio de estrelas
como aguarela da manhã que alucina o coração das águas do silêncio
tua enigmática cor voltará ao êxtase verde do horizonte
nossa velha História fecundada de tantas latitudes de ternura
nos seios das mulheres hão-de germinar os grãos do verde cafezeiro
e de verde se há-de colorir a casa
e a roupa
e os olhos
e todas as fronteiras
(…)
VI
esfolharás as vidas para além da voz dos pássaros
e o eco do teu nome será flor
e chão
e sombra
e palma
e fibra
e a cobra preta há-de enrolar-se em tuas coxas
afrodisíacas e puras
na estação das chuvas hão de florir teus filhos
tuas pérolas de nácar carregadas de esperança. Serão eles
os ecos bem aventurados das manhãs de Morro Peixe a Porto Alegre
no levante do teu corpo
(sacro corpo onde encontro as asas da minha lonjura)
carregarás a sombra que acalenta e envolve a nudez das palavras
recortes de luxúria em cada noite do Riboque
em cada lenda que de teus lábios se desprende
e voga mar adentro de nossas entorpecidas vozes
coisas da terra
da nossa terra
OLINDA BEJA in “À Sombra do Oká” – Prémio Literário Francisco José Tenreiro – 2012/13 – Edit. Escrituras – S. Paulo/Brasil (4ªedição)
E Edit. Edições Esgotadas- Viseu