Boneca de trapos é como me sinto.
Hoje, olhei-me e vi-a, cosida com vários e diferentes bocados de pano. Cada um representa uma vivência. Pedaços de alegria, risos, angústias, perdas, vitórias: todos cosidos, juntinhos, formam o eu. Acabo de me vestir e apresso-me, para não chegar atrasada.
Oiço o anúncio de nova paragem e levanto os olhos. É a minha estação; fecho o livro, guardando-o na minha mala, levanto-me e navego até à porta. Sigo com a manada para a saída, percorro o mesmo caminho e depois da curva lá está o hospital. Mais um dia se sucede.
De volta, passo pela mercearia, nas arcadas do meu prédio, para comprar maçãs. Tornaram-se minhas aliadas nestes dias em que enjoo e indisposição são piores. Fico a olhar para o pacote das bolachas de aveia que costumava comprar. Hoje não, mas em breve.
Entro no meu apartamento, pouso o saco com as maçãs e a mala, troco os sapatos pelas pantufas, e entro na sala. À direita tenho o móvel com a televisão, à esquerda o sofá e na minha frente quatro janelas, do tecto ao chão, por onde entra uma luz dourada e quente. Fico ali junto às janelas a energizar-me.
Onze meses depois, as cicatrizes mais recentes vão-se desvanecendo. Passo a mão por algumas, umas do acidente de carro, outras de doenças, diferentes cores e estados de cicatrização. A fisioterapia ajudou-me a recuperar força e movimentos. Estou mais forte, sou mais forte. Deixo a casa de banho, visto-me e apresso-me para ir apanhar o metro.
Na carruagem observo as pessoas: é hora do rebanho se juntar para ir trabalhar. Pondero sobre a minha rotina. Agora já não vou para um escritório, após o acidente e a longa recuperação, a empresa quis chegar a um acordo comigo para a minha saída. Vivemos burlados, no embuste de sermos importantes ou marcantes. Acreditamos ter tempo, desmarcar um jantar com amigos por causa do trabalho passa a ser normal, existem muitos outros dias. Até aquele minuto em que a existência muda. Contratar alguém para me substituir é lógico, porém rejeitarem a minha volta foi chocante. Hoje aceito que na altura não me respeitava o suficiente, nunca dizia não, independentemente do pedido.
Entro no edifício da junta de freguesia onde agora dou aulas de desenho.
— Boa tarde, Maria, vem cedo!
— Boa tarde, D. Judite, sim, quero preparar algumas coisas antes dos alunos chegarem.
Quarenta minutos depois, os meus alunos começam a chegar. São maioritariamente pessoas reformadas, demasiado jovens e ativas para se tornarem vegetativas, ocupando-se com diferentes atividades. Somos todos um bando de egoístas, tendemos a esquecer aqueles que estão na reforma.
Duas horas, às terças e quintas-feiras. Pessoas carinhosas, sempre a contar histórias, umas com piada, outras que passaram dos avós para os pais e que repetem para não se perderem. Aprendo sempre qualquer coisa. Eles estão entretidos, ativos. Por vezes, falam de como os filhos estão ocupados. O Sr. Rogério e a D. Irene são os que mais se destacam. Ambos viúvos, ela adora contar histórias, cantilenas, como as narradas pela minha Avó; o Sr. Rogério está sempre na brincadeira, com piadas. O tempo debanda como o vento, mas no final da cada aula sinto-me acarinhada.
Presentemente, também faço doces e bolos, vendo-os para dois cafés e um restaurante no bairro. O passa-palavra é uma excelente forma de publicidade, íntegra e sem custos. Comecei a ter pedidos para festas de aniversário e a minha clientela foi crescendo.
Acordo cedo. No dia anterior deixo o que posso preparado, mas o meu produto é fresco, por isso há ainda muito a fazer. A minha cozinha tem sempre vários cheiros, hoje os mais intensos são a canela e o café. As farófias estão prontas, polvilhadas com a canela; a mousse de café no frigorífico; só falta terminar o bolo de bolacha, mas antes tomo o pequeno-almoço. Ligo a chaleira, coloco a saqueta do chá de cidreira na caneca, tiro do frigorífico a minha tigela de fruta, coloco-a sobre a mesa e verto a água quente sobre a saqueta do chá. Sento-me na mesa da cozinha e fico a olhar pela janela. Ao longe vislumbro um pequeno monte coberto de verde, saboreio a fruta, o chá e a paisagem.
Uns vinte minutos depois é tempo de terminar o bolo de bolacha e fazer as entregas. Não me posso atrasar, hoje é quinta-feira.
A aula decorre, como sempre, com boa disposição e, quando termina, despedimo-nos e todos saem. Eu fico para arrumar a sala. Assim que saio, reparo no Sr. Rogério, do meu lado direito, parado.
— Sr. Rogério, ainda aqui está?
— O meu filho ficou de se vir encontrar comigo para irmos jantar, mas atrasou-se.
— Podia ter ficado lá dentro comigo e não aqui na rua, sozinho.
— Maria, posso ficar um pouco na rua, ele está a chegar, além disso, sei que, depois de arrumar tudo, fica um bocadinho a desenhar. Sou observador, reparei que, por vezes, quando chego para uma nova aula, há um trabalho a secar.
— Mas, como sabe que é meu? Poderia ser de outra pessoa.
— Pelas aulas, quando desenha para nos explicar qualquer coisa; reconheci o seu traço. Parece intrigada. O meu filho é arquitecto, por isso percebo de traços.
— Ok, apanhada, é verdade, por vezes fico a desenhar e a pintar. Não sabia que o seu filho era arquitecto. Agora, que penso bem, o Sr. Rogério não costuma falar muito da sua vida pessoal.
— Gustavo! — Acena-lhe e, voltando-se para mim — É o meu filho. Olho na direcção do filho do Sr. Rogério. Um homem alto, moreno, de cabelos pretos, olhos verdes e uma expressão séria; o conjunto é atraente.
— Desculpa o atraso, Pai. — Coloca-lhe a mão no ombro e volta-se para mim — Boa tarde, peço desculpa do meu atraso e ainda mais se, com isso, atrapalhei a sua vida.
— Não atrapalhou nada, o seu Pai é excelente companhia.
— Esta é a nossa bonita e doce professora de artes, a Maria. Ela também desenha e pinta.
— O seu pai é um galã. — Gustavo sorri, caramba é ainda mais bonito quando sorri. —
Desejo-vos um bom jantar. Adeus, Sr. Rogério, e até terça-feira.
— Adeus, Maria.
Segui pela rua até à estação de metro. Na viagem de regresso não olhei em volta como usualmente, concentrada em perceber o que se tinha passado; mesmo antes do acidente, o olhar de um homem não mexia comigo. Depois do acidente, em jantares com amigos e desconhecidos, nenhum me tinha feito sentir aquele formigueiro bom.
Continuei a minha rotina, todavia, sentia um calor e uma leveza maiores.
Uma semana depois, a aula correu como sempre. Ao terminar, todos se despediram e foram saindo, só o Sr. Rogério ficou para trás.
— Maria, desculpe abordá-la assim, mas gostaria de lhe perguntar duas coisas. A primeira é se posso ficar a fazer-lhe companhia, uma vez que o meu filho virá ter comigo novamente, para irmos jantar.
— Claro que sim, Sr. Rogério.
— Obrigado — sorrindo —, espero igual resposta à segunda pergunta. Gostaria de jantar connosco hoje?
— Sr. Rogério, agradeço o convite, mas este é um momento seu e do seu filho, não quero intrometer-me.
— Não estaria a fazê-lo. Ambos gostaríamos da sua companhia.
Como estava de costas para a porta não me apercebi da chegada de Gustavo.
— Olá, Gustavo. Agradeço o convite, mas, para além de achar que não me devo intrometer no vosso jantar, ficaria tarde.
— Levo-a a casa depois do jantar, o meu carro fica estacionado ao pé da casa do meu Pai.
— Muito bem, vamos jantar.
O sorriso de Gustavo parecia eletrizar-me.
Fomos a um restaurante italiano, não muito distante.
O jantar foi descontraído, o Sr. Rogério, antigo professor de História, gostava de falar das pequenas narrativas menos conhecidas. Gustavo foi contrapondo com a história da arquitectura, notando-se uma cumplicidade entre ambos. Acabaram por brincar com algumas lendas.
Terminado o jantar, despedi-me do Sr. Rogério e o Gustavo levou-me a casa.
No carro, a caminho da minha casa, ouvindo uma música suave, Gustavo diz-me que sabe onde fica o meu bairro e ficámos em silêncio.
— Espero que não tenha sido muito chato, o jantar, ou a nossa companhia.
Sorrio e olho para ele, apanhando-o a olhar pelo canto do olho.
— Nada Gustavo, fizeram-me rir e ainda aprendi umas coisas.
— Ainda bem. O meu Pai comentou que, para além das aulas, de pintar e desenhar, faz doces, para venda?
— Sim. O meu prédio é já este.
— Maria, quero voltar a estar contigo, jantar, ou almoçar no fim-de-semana, dar um passeio, cinema, teatro, só os dois.
— Gustavo, antes de responder, preciso que saibas que eu tive um acidente grave, quase há um ano, e… deixou marcas.
— Todos temos marcas, umas mais visíveis que outras, doenças, medos. Deixa-me conhecer-te. Poderemos ficar amigos, ou algo mais, ou nada, apenas conhecidos.
— Não é medo de conhecer alguém, só queria que soubesses que tenho limitações.
— E achas que eu não as tenho? Acredita que não sou uma excepção. Tens o teu telemóvel? Posso?
Aceno-lhe com a cabeça e ele introduz o número na minha lista de contactos, de seguida liga para o dele e desliga.
— Vou esperar até amanhã à tarde, se não me ligares, eu ligo-te. Boa noite, Maria.
— Boa noite, Gustavo.
No dia seguinte, os meus olhos deparam com uma publicidade a uma agência de viagens: a imagem de uma praia paradisíaca. O que me prendeu a atenção foi o slogan: O sonho comanda a vida; Sorrio. Sim, é altura de voltar a sonhar.
Nota: por desejo da autora, este conto não segue o Acordo Ortográfico de 1990