Quais sonhos? – pergunta alguém. E com toda a razão. Porque há muitos. Pelo menos, temos os sonhos natalícios, os sonhos a dormir e os sonhos acordados. Todos eles importantes na construção da nossa identidade. Os primeiros avivam memórias. Os segundos, de alguma forma, relacionam-se com a consolidação de memórias. Os terceiros podem correr o risco de ficarem reprimidos nas nossas memórias.
Os sonhos natalícios, levemente crocantes e polvilhados de açúcar e canela, ou amolecidos por uma calda de açúcar, com um toque de canela, claro está. Bolinhos fritos às colheradas, em óleo abundante, que ganham uma certa forma esférica e que, durante tal fritura, parecem ter vontade própria, virando-se sozinhos para dourarem por igual. Deliciam os sentidos e perpetuam as tradições. Os sonhos da querida avó? Mas (em matéria de sonhos há sempre a hipótese de encontrarmos um “mas”), cada um destes sonhos, numa receita tradicional, pode equivaler a quase duzentas calorias. Um só? Se forem dois ou três ou quatro, hum, façamos as contas e é assim que sonhos prazerosos começam a converter-se em pesadelos que nos inquietam por mais ou menos tempo (em matéria de sonhos, sim, também há sempre a hipótese de mergulharmos em pesadelos). Aproveitemos este alerta calórico, capaz de nos amargar a alma, e mudemos para outros sonhos. Os sonhos de quando dormimos, essa atividade cerebral misteriosa, que tanto debate tem criado entre neurocientistas e psicanalistas. Adormecer é um ato de coragem em si próprio, porque o sono, embora necessário para a nossa saúde no geral, não deixa de ser uma condição estranha. Depois de adormecemos, para ali estamos, não sabemos o que nos acontece, nem o que acontece à nossa volta, se ainda vivemos, ou se já morremos. E não bastasse esta vulnerabilidade, eis que o nosso cérebro, por conta própria, se entrega a uma azáfama de processamento de informação, gerando sonhos, dos quais, na maioria das vezes, temos lembrança nula ou em retalhos de enredos, frequentemente sem ponta por onde se lhes pegue ou com alguma aparente ligação a um acontecimento recente ou antigo ou, quem sabe, a algo que nos venha a acontecer. Esta referência ao futuro, é a oportunidade conveniente para passarmos aos sonhos de quando estamos acordados, conscientes, em menor ou maior escala, de quem somos e quem queremos ser, do que fazemos e do que queremos fazer. Alguns deles são sonhos-fantasias, devaneios que, se tudo correr bem, são inofensivos para o nosso equilíbrio. Idealizamos uma outra vida e ficamo-nos pela satisfação de apenas imaginar o que poderia ser, sem nos importarmos de efetivamente não ser, voltando sempre ao nosso mundo real, sem amarguras de maior. Outros dos sonhos de quando estamos acordados, são os sonhos-aspirações, desejos que temos. Sonho um dia ser… Gostava tanto de um dia… Sonhos que guardamos em nós. Escondidos pelo receio de não sermos capazes. Abafados pela prioridade que damos a outras tarefas ou pessoas. Sabotados pela nossa falta de foco e disciplina. Com o passar dos anos, podem ser esquecidos ou permanecem em nós, envoltos em melancolia. Eu podia ter sido… Eu gostava de ter feito... Se pensarmos bem, isto de lhes chamarmos “sonhos” resulta numa emboscada. Culturalmente e em qualquer dicionário, a palavra “sonhos” dirige-nos sobretudo para algo de “imaginação”, “ilusão”, “utopia”, “difícil ou impossível de concretizar”, “de pouca duração”. Não são estas as palavras de que precisamos para conseguirmos avançar. Sonhos-aspirações têm de ser encarados como objetivos a concretizar, de acordo com as nossas forças e as nossas fraquezas. Quem o diz? Muitas pessoas. Incluindo este alguém que palavrou estas ideias e que durante muitos anos sonhou escrever, partilhar a sua voz. Foi um sonho escondido, abafado e sabotado. Foi. Está a deixar de ser e haja alento para continuar.