Fúria na ponta dos dedos e um ranger de dentes afiam a prosa de Fernanda Melchor (Veracruz, México) até o leitor a sentir como unhas a raspar num vidro.
São 214 páginas de violência física e emocional num panóptico composto pelas perspectivas dos pontos de foco da narradora.
Em página alguma, o leitor se sente confortado e confortável. A torrente de agressividade não lho permite. Tudo cheira a miséria e nada ilumina a saída.
“Temporada de Furacões” (Elsinore) leva-nos até ao limite; o espaço negro que desconfiamos ter na nossa alma emerge. Não há gesto manso que amaine tanta raiva.
Tudo começa com um fim despropositado. A bruxa morreu. Foi encontrada num canal de irrigação por um grupo de crianças. A mutilação denuncia assassínio. O que terá levado alguém a matar a bruxa?
A sua casa, temida por muitos, era local certo para consumo de drogas, esconjuros e abortos. À bruxa, odiada e temida, chegavam os rejeitados. Ela dava-lhes o que precisavam, no entanto sabia que pouco lhe seria oferecido troca. Ideias nebulosas afastavam-na da sociedade, e a sociedade criava mitos sobre o seu comportamento. E foram esses mitos que fomentaram a cobiça que a mataria.
As vozes de rapazes envolvidos num grupo disfuncional são vertidas neste narrador (ou narradora) que destila os seus pensamentos e acções. A caracterização pessoal e dinâmica social vão sendo desvendadas, uma a uma, até ao clímax. Ficamos a perceber o quanto a violência é parte de cada um. O abuso sexual é uma forma mais de violência, e a escritora não se inibe de descrições sem eufemismos. A destreza narrativa permite-lhe saltar de voz em voz sem nunca perder a sua. Sabemos de quem fala, mas também ouvimos o seu timbre, maneirismos e idiolecto. É uma das grandes conquistas de Melchor, esta, a de miscigenar voz narrativa com as ideias dos personagens, sem perder nem retirar ao avatar a sua identidade.
“Temporada de Furacões” aproveita a elasticidade própria do romance; a narrativa policial parece dominar a estrutura e o estilo, mas depressa é contrariada com diversas digressões que denunciam feminicídio, zoofilia, violações e religião em La Matosa, localidade mexicana esquecida por Deus.
Neste ermo varrido por tempestades, tanto metafóricas como reais, a escritora mexicana aproveita a ficção para contar — se seguirmos as palavras de Jorge Ibarguengoitia na epígrafe —, factos reais através de personagens fictícias. E de realidade está a narrativa prenhe. Melchor não é subtil; ela passa como um bulldozer e deixa nas frases toda a violência exposta pelos vocábulos mais interditos.
Se o leitor quer o coração quentinho e de bem com a vida, não entre por esta porta. Aqui não há esperança. No entanto, encontrará uma escritora muito segura, com propósito, e capaz de lhe revolver as entranhas.
O multipremiado «Temporada de Furacões» é uma masterclass de como se pode narrar uma história. Marca a ferro e fogo a qualidade de uma escritora que, apesar de nascida em 1982, já escreve como um mestre do ofício.