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Timor, o Paraíso ou o país a preto e branco

Não me lembro de ter tido conhecimento sobre o Paraíso na minha infância. Achava que vivia num lugar, que para mim era seguro, por viver junto daqueles que me amavam. O sol nascia todas as manhãs em Lorosae e morria todas as tardes em Loromonu. Os pássaros cantavam, as árvores frutificavam, e os meus pais foram tendo filhos. O Paraíso só começou a entrar na minha existência com a catequese. Havia um lugar distante, que era o Éden de onde Adão e Eva haviam sido expulsos por terem comido o fruto proibido. No meu caso era uma coisa tão banal, por ter comido tanta goiaba madura do quintal dos rai-nain, que não achava que fosse motivo suficiente para me expulsarem da terra onde vivia. Só depois me foi explicado que no Paraíso havia o Bem e o Mal que eram representados, respetivamente, pelas cores branca e negra. A primeira imagem que tive do Paraíso foi a preto e branco com a leitura da Bíblia.

As primeiras fotografias que me foram mostradas também eram a preto e branco. Nelas as pessoas mostravam-se muito sérias, vestiam-se a preceito e olhavam para o infinito. Nenhuma delas sorria. Pensei que fosse por terem sido expulsas do Paraíso. Mais tarde, para me certificar, perguntei aos meus pais se os antepassados que apareciam nas fotografias também haviam sido expulsos do Paraíso como D. Boaventura de Sottomayor, o régulo de Manufahi, que se rebelou contra as autoridades portuguesas. Quando foi a minha vez de ser fotografado a reação foi de medo e de pavor. De forma alguma queria ser expulso. Perante a ordem paternal tive de fazer o jeito de me colocar muito sério com a mão na cintura a olhar para o infinito.

Raras vezes vi fotografias dos meus antepassados sorridentes. Lembro-me que nas aldeias, no meio de montanhas onde viviam os meus familiares, as pessoas desapareciam no interior das casas ou nas densas matas quando alguém aparecia com a máquina fotográfica. Devia ser esse o motivo que fez com que, por mais que tentasse, e bastas as vezes o fiz, nunca tivesse encontrado no Álbum de Álvaro Fontoura, um dos governadores de Timor, alguém que sorrisse. Os homens mostravam-se sérios e hirtos e as mulheres apareciam despidas de tronco para cima, submissas. Fizeram-me lembrar os rebeldes que foram capturados e exibidos como troféus.  

Timor também foi o paraíso de Ruy Cinatti, o poeta português que se apaixonou pelo território onde terminava o império e por lá viveu um tempo da sua vida, depois de ter feito o curso de agronomia em Lisboa. Descreveu-o como sendo uma terra de paisagens com vultos. Os vultos eram os timorenses. Vultos que apareciam e desapareciam. Apenas vultos. Creio que o disse em defesa dos timorenses para dar a entender aos que mandavam em Lisboa que nem tudo era um mar de rosas nas terras onde o sol logo em nascendo vê primeiro, razão pela qual teve alguns dissabores conforme o próprio me confidenciou quando o consultei sobre os solos de Timor. Lembro-me que andava muito triste por causa da ocupação de Timor pela Indonésia. Chovia. Pediu-me que fosse rezar com ele por Timor, em plena Rua Jau. Tive uma valente constipação que me fez ficar na cama durante alguns dias. Coisas que uma pessoa faz para alcançar o Paraíso.

Na adolescência, nas minhas andanças pelo território que aliás descrevi no meu primeiro livro “Crónica de uma Travessia” tive a noção que vivia num paraíso e, por ter tantas línguas, também numa Torre de Babel. Chorei com saudades do paraíso quando saí para estudar em Portugal.

As primeiras imagens que vi de Timor depois da invasão indonésia eram a preto e branco, de crianças esfomeadas, esqueléticas. Delas fizemos cartazes e panfletos para mostrar ao mundo o que estava a acontecer numa terra que devia ser o paraíso, para que a comunicação social mobilizasse as boas consciências e o caso tivesse um final feliz.

Regressei pela primeira vez a Timor, um tempo depois do referendo, para acompanhar José Saramago, o nobel de literatura, que ao ver as crianças que se aproximavam dos fotógrafos sem medo das máquinas fotográficas, dizia que só tinham olhos. Eram elas que fotografavam os estrangeiros com os seus olhos luminosos. Sorriam como se tivessem recuperado o paraíso roubado aos seus antepassados. Eram sorrisos de crianças de um país independente.

Timor é um estado soberano e com petróleo que a alguns enriquece e a outros empobrece. Por debaixo do manto colorido que encanta quem chega ao território, existe um país que ainda é a preto e branco onde uma grande parte da sua população ainda vive no limiar da pobreza. Virá um dia em que Timor-Leste será um paraíso, quando os timorenses o souberem colorir com a sua experiência e sabedoria por cima da trágica memória da sua história.

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AUTOR(A)
Luís Cardoso

Luís Cardoso nasceu em Kailako, uma vila no interior de Timor que aparece por diversas vezes referenciada nos seus romances. É filho de um enfermeiro que prestou serviço em várias localidades de Timor, razão pela qual conhece e fala diversos idiomas timorenses. Estudou nos colégios missionários de Soibada e de Fuiloro e, posteriormente, no seminário dos jesuítas em Dare e no Liceu Dr. Francisco Machado em Díli. Licenciou-se em Silvicultura no Instituto Superior de Agronomia de Lisboa. Desempenhou as funções de Representante do Conselho Nacional da Resistência Maubere em Portugal. É autor dos romances: Crónica de Uma Travessia (1997), Olhos de Coruja Olhos de Gato Bravo (2002), A Última Morte do Coronel Santiago (2003), Requiem para o Navegador Solitário (2007) e O ano em que Pigafetta completou a circum-navegação (Sextante Editora, 2013).

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