Aquele dia de véspera de Natal amanheceu frio. As nuvens, cinzentas e com manchas avermelhadas e doiradas, reflectiam, na geada branca, furtivos reflexos doirados. Pareciam empenhadas em melhorar o sabor e ajudar na cura das pencas tenras e quase albinas. Estas iam ser cozidas nas panelas de ferro de três pernas e saboreadas logo depois, na ceia de Natal, quando toda a família se reunisse ao longo dos dois lados da comprida mesa de grossas tábuas de carvalho rústico.
Respeitando o poder hierárquico instituído na família, um dos topos da mesa era ocupado pelo chefe da casa, sentado na cadeira de encosto mais alto que havia, a do Papa, como diziam os mais novos, em tom galhofeiro. O outro topo, estava reservado aos tachos e panelas com batatas, bacalhau e as pencas apanhadas nessa manhã, quando ainda polvilhadas de gelo branco, formado durante a noite. Completando o conjunto, lá estava também, pronta a ser servida, a galheta de folha de estanho, com o azeite. O estado virgem do precioso óleo coloria de verde o fundo alvo do prato. Fora trazido, especialmente, do Douro, da quinta de um velho amigo da tropa, cujas provações vividas conjuntamente em teatro de guerra com o dono da casa, o tornaram um amigo para a vida. Havia uma tigela com alho picado miudinho para ser servido cru. Para quem preferisse, estava disponível, num pequeno tacho de alumínio fundido — que, por tanto ser polido com a cinza da lareira, mais parecia de prata — o azeite e alho fervidos com cominhos. O seu aroma, junto com o da canela dos vários doces feitos ao longo do dia — a aletria, as rabanadas, os formigos, as filhoses — partia dali intenso e atrevido, a propagar-se pela casa. Cobria a mesa a toalha de linho rústico, só usada na noite de consoada. Fora tecida em duas peças, cozidas uma à outra, ao comprido. Era o que permitia a pequenez do velho e estreito tear manual de madeira, na família há mais de três gerações. A brancura do tecido, apenas quebrada por duas listas carmesim nas pontas, contrastava com o achocolatado claro das paredes da cozinha, outrora brancas por sucessivas camadas de cal. Dessa cor se encarregara o fumo que, quando havia vento a dificultar-lhe a saída, se escapava matreiro e cinzento da saia da chaminé. Nela ardiam, lentamente, bem secos, grossos troncos de carvalho, provenientes da poda de árvores, de anos anteriores. Desde a manhã até à hora de ir para a cama, aqueciam a casa e aconchegavam os corações nas longas conversas ao serão. O Inverno, longe dos ares amenos e húmidos do mar, corria frio. No dia seguinte ainda conservavam um brasido meio adormecido que, depois de soprado, facilmente inflamava novos toros, num ciclo que durava até à chegada da Primavera.
No dia anterior, à noitinha, logo a seguir à passagem do Gordo (Preço Certo) na televisão — que não dera nenhum carro — o casal de idosos, pais do dono da casa, que com ele fora viver há uns meses, manifestara a intenção de ir à sua terra, que distava dali meia dúzia de quilómetros. Pretendiam visitar a sua antiga e arruinada casa, construída há quase três séculos e que tivera como única melhoria de vulto a construção de uma casa de banho no seu interior. Embora bem tratados pelos seus cuidadores, filho e nora, e alegrados pela traquinice dos netos, as saudades que sentiam da casa doíam-lhes imenso. Por isso o velhote, já afectado por alguns sintomas de declínio cognitivo, de vez em quando, sentia a necessidade de lhe fazer obras, para nela irem morar de novo, desejo incontido de autonomia que já não tinham. Por pouco tempo seria, decerto. As patologias de que sofriam já não lhes permitiam viver muito tempo sozinhos.
— Está bem! Vamos lá amanhã, a seguir ao almoço. Tem de ser uma visita rápida, porque é véspera de Natal e temos que vir descascar as batatas — dissera-lhes o filho cuidador, um tanto contristado por não saber mais o que lhes fazer para se sentirem bem e, ainda assim, ver desconsiderada a sua filial dedicação.
Após o almoço do dia seguinte, chegou a hora de se porem a caminho, ao encontro do mestre, previamente contactado para lhes fazer as desejadas obras. Seriam iniciadas, sobretudo ao nível do telhado, o qual já não impedia a água de entrar, nalguns pontos.
A mãe, que já só caminhava dentro de casa com a ajuda de um andarilho, foi colocada na sua cadeira de rodas, presa a um cabo de aço que enrolava ou desenrolava numa roldana, através de um engenhoso sistema electromecânico. A ajuda de um comando permitia-lhe descer ou subir em segurança os cerca de trinta metros de rampa íngreme, da casa até à rua.
O céu mostrava um tempo incerto e estranho, mas, ainda assim, com algum sol. A meio da lenta e cautelosa descida, inesperadamente, começou a cair uma chuva forte, daquelas que nos obrigam a correr à procura de um abrigo. Os trovões e relâmpagos também vieram, furiosos, participar naquele acto de invernia súbita e ruidosa. O resto da descida teve por isso que ser feito a correr, pondo em risco as habituais regras de segurança, sempre adoptadas nas descidas ou subidas. O piso metálico escorregadio, e a pressa, fizeram a cadeira deslizar, projectando a senhora para fora da plataforma. Deteve-a, na queda desgovernada, o portão de ferro, junto à pala de betão armado, ao lado da garagem. Era lá que o velho Opel Kadett os esperava, para a curta viagem. As gargalhadas do velhote (a demência por velhice tem destas coisas) contrastavam de forma descarada com a aflição dos restantes participantes na cena.
— Magoou-se? — perguntaram todos, aflitos.
Sacudindo as pingas do grosso casaco preto, a mãe respondeu, com um meio sorriso nos lábios, sabe-se lá se contagiada ou envergonhada pelo riso descarado e despropositado do marido:
— Não! Está tudo bem. Ajudem-me a sentar na cadeira por favor.
A preocupação começou a diminuir. Tudo não passara de um grande susto!
Lá se mantiveram algum tempo, que todos acharam longo, abrigados debaixo da pala de cimento. Continuava a chover e a trovejar, com intensidade. Ninguém falava. Até ao momento em que o filho cuidador —, instantaneamente lembrado do que lhe diziam quando era menino e trovejava —, resolveu quebrar o silêncio:
— O Jesus está zangado!
Seguiu-se um novo silêncio.
— Alguém se andou a portar mal… — insistiu.
Continuou o silêncio durante minutos.
—Vamos? — disse-lhes, quando a chuva, tão repentinamente como começara, parou.
Olhando-se meio envergonhados, imbuídos daquela cumplicidade de muitos anos que faz adivinhar pensamentos, os velhotes responderam à vez.
— Não vale a pena. Vamos para cima.
O filho, algo surpreendido, ainda aguardou por uma mudança de planos. Como tal não aconteceu, lá foram todos rampa acima a recolher-se.
Das obras, os idosos, nunca mais falaram. Nesse dia, estiveram mais simpáticos do que o habitual e não só por ser Natal. Sentia-se que queriam pedir desculpa por alguma coisa e não conseguiam fazê-lo.
Aquela chuva repentina e despropositada, a queda aparatosa da mãe e o curto diálogo trocado fizeram libertar recordações longínquas. Mais do que isso, operara um milagre naqueles corações sensíveis e crentes, que em todas as boas e más manifestações da natureza ou perante qualquer sucesso ou insucesso, como uma simples queda, veem mão divina que, às vezes, castiga.
A ceia de Natal correu melhor do que em anos anteriores. O bacalhau estava no ponto. O vinho tintão — em todas as suas fases produzido com a ajuda dos membros da família — deixava, nas antiquíssimas canecas de porcelana branca, alguns traços que escorriam até à toalha.
— É forte o vinho, este ano. Está muito bom. Vê-se pela forma como escorre nas canecas! — disse o pai do dono da casa, de repente lúcido, e a quem, nessa noite, deram o topo da mesa: o destinado ao chefe da casa.
As lâmpadas, em forma de vela, do candeeiro colocado por cima da mesa, punham, nos olhos húmidos de quem as observava, relampejos de estrelas: certamente por causa do fumo que se escapava da chaminé. A refeição acabara. A garrafa de Porto, aberta para encerrar o repasto, ia a meio. O “pestanudo” tardava em chegar. As histórias de outros natais de muito longe, saíam lentas e emotivas.
No dia seguinte, e em muitos outros, a vida pacata e simples daqueles velhotes e dos seus cuidadores corria simples e sem sobressaltos. A velhota continuaria a preencher as suas tardes sentadas na pequena varanda envidraçada.
— Vou para o aquário — costumava dizer, agarrada ao andarilho que a ajudava nas pequenas deslocações. Ali gostava de apanhar o tímido e morno sol dos dias. Enquanto prosseguia na leitura dos “Contos da Montanha” e observava os gatos no quintal, às voltas com as suas coreografias amorosas. Embora tivesse apenas a terceira classe — bem tirada, como fazia questão de frisar —, gostava muito de ler. Adorava o livro que o filho lhe oferecera, escolhido do armário grande da sala. Por vezes não sabia o significado de alguma palavra que fugia ao seu léxico habitual e lá indagava curiosa:
— O que é um dólmen?…
Os velhotes viveram tranquilamente mais uns anos na companhia dos seus cuidadores. Regularmente, tinham de recorrer aos cuidados do serviço de urgência do hospital concelhio. Partiram com o intervalo de um ano. Uma pneumonia, contraída no mesmo hospital, pôs fim à sua presença entre os entes queridos.
A mãe, a última a partir, ainda pode assistir ao início da recuperação da sua casa, que o filho, entretanto, resolvera encetar. Na sua cadeira de rodas, não dispensava o acompanhamento das obras. Primeiro o telhado, com madeiras e isolamentos novos, para lhe dar um mais eficiente isolamento térmico. A seguir passara-se ao retirar de toda a velha caliça que a revestia, por já não cumprir a sua função isolante e estética. À medida que a operação decorria, iam ficando a descoberto lindíssimas paredes de xisto avermelhado, que pareciam exigir-nos que não as tapássemos mais. Apenas as ombreiras e padieiras das portas e janelas eram de granito irregular. Também elas pareciam fazer coro com as de xisto:
— Não nos tapem!
— Está bem, não vos tapamos — pareciam todos dizer-lhes, rendidos à beleza das suas cores.
A maior surpresa, contudo, ainda estava por revelar, debaixo da caliça. À medida que ia sendo retirada da ombreira da porta grande da casa, iam aparecendo caracteres gravados na pedra. Primeiro três iniciais, certamente de um nome. A curiosidade obrigava a acelerar a remoção. Quatro números, irregulares e toscos vieram depois: 1760!
De olhos brilhantes de emoção, ouviu-se a idosa:
— Eu bem vos disse que a casa era muito antiga…
Na sequência de uma pesquisa posterior, ficou a saber-se que a casa era a mais antiga da freguesia que já tivera o nome de Sacro Salvatore de Vilario. Permanece ainda de pé, depois de alguns episódios em que se pensou demoli-la, antes de se partir para a reconstrução. Decerto as memórias que ela guarda, umas mais recentes, outras remontando a séculos passados, terão contribuído para que se tornasse, quem sabe, eterna.
Nota: por desejo do autor, este conto não segue o Acordo Ortográfico de 1990