Nos finais de tarde, sem chuva e sem ventania, há sempre um grande rebuliço no tronco mais entroncado do Caminho das Árvores Altas, na Mata das Areias. Todos querem chegar cedo, para terem lugar nas pernadas e nos galhos que ficam mais perto do céu. Os mais leves bem lá no alto e os mais pesados logo a seguir.
Esse é o melhor lugar para sentir o mar e ver o sol pincelar novas cores, até tudo ficar em tons de luar. Não há melhor sítio para conversar, pensar ou até sonhar. Quando há uma brisa, então é mesmo o paraíso. A balançar, de cá para lá. De lá para cá. Daqui para ali, de ali para acolá. Até se pode adormecer, como se estivéssemos em cima de uma nuvem ou no borbulhar da espuma do mar.
Primeiro, costumam subir os que se deslocam mais devagar; a seguir, os que vão assim-assim e, por fim, os mais rápidos. Todos na mira do seu lugar favorito, sem esquecerem do lema “quem não vai cedo, perde o folhedo”.
Ora, num desses entardeceres, os que já estavam a chegar ao cimo voltaram para trás, tão depressa quanto podiam, em grande alarido. Parecia terem visto o pior dos fantasmas ou o monstro mais temido.
No meio da confusão, somente as formigas estavam entusiasmadas.
— Nem imaginam o que está mesmo em cima do nosso ramo — gritou a formiga Loriga, prima da Rabiga, completamente eufórica e com a cabeça às voltas. — Um escorrega! Um enorme escorrega verde, todo espiralado, todo espiiiiiiraaaaalaaaaaaaadooooooooooooooo.
— Uaaauuuuu! — exclamou a formiga Estiga, também prima da Rabiga, em rodopio sem parar.
Estavam as parentes da Rabiga já a sentirem borboletas na barriga de tanta animação, quando um dos pardais, que sabia sempre tudo o mais, veio estragar a festa.
— Cuidado, que eu não vi nada disso. Primeiro, essa coisa estranha nem sequer é verde, é meio alaranjada, quase da cor do fogo e tem dois faróis que rodam em todas as direções e veem tudo, mesmo tuuuuuuudo, em seu redor. Não pode ter boa intenção.
Quando as formigas primas da Rabiga iam começar a explicar melhor o que viram, um dos ouriços, da família dos Eriços, que vivia no tronco ao lado, confirmou o pânico do pardal:
— Também acho que essa coisa, ou melhor, esse monstro, não se apoderou dos nossos lugares com bom propósito — concordou ele. — Temos de ter muita cautela, pois o que eu observei é muito pior. Não é verde, nem cor de fogo. Nem tem escorrega, nem faróis a girar. Eu descobri que tem uma garra comprida, muiiiiito compriiiiiiida.
As formigas primas da Rabiga, impacientes, tentavam falar do escorrega, que tinham a certeza de ter avistado, mas ninguém as ouvia.
Cada um advertia para um perigo maior do que o outro e o medo aumentava como um nevoeiro cada vez mais denso.
— Com faróis para procurar, garras e, talvez, enormes dentes bem afiados, não deve ser coisa boa — afirmaram muitos dos animais que se aproximavam para ouvir a tragédia do roubo dos lugares altaneiros com vista para o mar.
— Nunca mais vamos ter o nosso cantinho preferido — começaram a choramingar outros, já a sentirem-se nostálgicos.
— Uma autêntica injustiça — reclamavam os ouriços Roliços, compadres dos Eriços.
No meio de tamanha confusão e desânimo, uma das formigas, a que mais sentia a força rabiga a correr-lhe nas veias, resolveu intervir:
— Esta discussão é inútil e os lamentos não nos servem para nada!
— Mas o que podemos fazer? — perguntou, curioso, um dos pardais.
— Temos de saber quem é esse estranho que se instalou no cimo da árvore — respondeu a tal formiga, com uma energia capaz de enfrentar até a Cabra Cabrês.
Todos concordaram que podiam não ter olhado bem ou não ter observado tudo. E, além disso, juntos, podiam enfrentar qualquer estranho ou monstro, por mais cabrês que fosse. As palavras da formiga, que até era prima direita da Rabiga, aguçaram a vontade de conhecer melhor o que todos viram, mas ninguém parecia ter entendido.
O medo transformou-se em entusiasmo e a força de todos em ação.
Decidiram, pois, que tinham de ver melhor e, quem sabe, enfrentar a perigosa criatura.
Então, com muita cautela, pata-ante-pata ou asinhas de lã, consoante os casos, subiram, subiram, subiram, de pernada em pernada, até conseguirem avistar o estranho.
E lá estava tudo. Uma cauda verde enrolada e agarrada a um tronco, tal e qual um escorrega em espiral. Dois olhos que giravam como faróis. Uma língua comprida em forma de tubo, como uma garra para chegar longe. Cores que podiam variar. E até quatro patas que ninguém notara.
— Mas é um cama… cama… — começou a anunciar a formiga Loriga, prima da Rabiga.
— Uma cama? — interrompeu um dos ouriços Roliços. — Mas o que faz uma cama no cimo da árvore? É muito estranho.
— …leão — terminou a formiga que começara a falar.
— Um leão? Está tudo doido — resmungou um pardal.
— Nem sequer há leões por estas bandas, nem eles gostam de subir às árvores — apressou-se a explicar outro dos pardais, que sabia sempre tudo o mais.
— Um cama…leão! — disse, entusiasmado, outro dos pardais.
Só aí todos perceberam.
— Um camaleão. É um camaleão. Um camaleão com as cores do arco-íris — gritaram todos ao mesmo tempo.
A algazarra interrompeu o descanso do monstro, que afinal não era monstro.
Com a cauda e as patas bem agarradas ao galho onde se encontrava, lá estava o camaleão. Nisto, virou a cabeça e focou ambos os olhos no local onde todos se esconderam entre a folhagem, uns quantos ramos mais abaixo.
De repente, um silêncio medonho espalhou-se como uma onda de arrepios.
Por instantes, pensaram que iam estremecer até serem engolidos, ou esmagados, ou triturados…
Mas não. O camaleão, apenas ergueu um pouco a cabeça, alinhou o olhar e desafiou-os, em voz suave e cores de amizade:
— Venham. Aqui o mar chega para todos. Mas não façam barulho — disse a segredar. — Não quero que assustem alguma amiga que possa aparecer com tons de amor e olhos emparelhados para mim.
Nesse dia, todos sentiram que o toque da brisa do mar e o canto da folhagem podiam trazer novos sonhos e amigos.