Uma carta de palavras leves - Claudia Passarinho

Uma carta de palavras leves

Todos os dias mudamos. E connosco, também a nossa morada pode mudar. Descobri que se não registamos as mudanças, mesmo que mentalmente, ficamos sem saber onde nos encontramos. E porque deve um pai procurar saber onde se encontra, pergunta o leitor? Deixo à sua mercê, uma eventual resposta. Peço-lhe que não se injurie quando lhe digo que o que me aconteceu poderia acontecer a qualquer homem. Em especial a um pai.

Vou reatar aquele presente.

Neste momento encontro-me a um canto da cozinha. Mais animado do que o habitual e sem dores nas articulações, como um marinheiro que nunca calcificou os ossos. Catarina (por questões de confidencialidade vou ocultar o nome verdadeiro), acaba de se sentar à mesa de refeições. Come os cereais descontraída, pingando o queixo a cada colherada. Enquanto suga o leite da colher, usa o polegar com mestria perscrutando as atualidades no telemóvel. Não olha para o canto onde me encontro, está entre pensamentos e um escasso pequeno-almoço.

Levanta-se, tal qual uma hiena, para ir buscar um guardanapo. Está na segunda gaveta, previno, quando a vejo abrir a primeira. E movo-lhe o telemóvel de sítio. Limpa a boca, pega no telemóvel e passa por mim, sem sequer reparar na judiaria que lhe fiz.

Deixa tudo como está. Os pingos brancos derramados na mesa, o guardanapo amarfalhado em cima da colher e os restos dos cereais a boiarem como esponjas numa piscina láctea. Nunca gostei que comesse processados.

Sigo-a até ao quarto, e fecho a porta atrás de mim. Sobressalta-se com o estrondo que fez ao fechar. Apercebo-me que fica com pele de galinha e estática a avaliar as possibilidades. Sei que tenho estado desaparecido, começo por lhe dizer. Passa por mim. Quase tocamos pele com pele. Confesso que me arrepiei.

Rodo nos calcanhares e, aproveitando o facto de se encontrar de costas, a confirmar se a janela estaria aberta, jorro o que há muito ando a treinar.

Não te zangues. Escrevi-te uma carta; tem três páginas. Fala do meu afastamento e do quanto gosto de ti. Tirei-a do bolso. Desdobrei-a. Exponho uma letra infantilizada, tão difícil de ler quanto foi de escrever. Claramente não ta enviei. Vou deixá-la na secretária para que tenhas oportunidade de ler. Pode ser? Mas faço-a cair no chão. Estava escrita de forma tão leve que não estranhei a ausência do barulho quando me caiu aos pés.

Ela olha para mim como se não me visse. Ainda de sobrolho arregaçado, um rosto jovem, monta um sorriso de Judas, pega no casaco, prende a alça da mochila no ombro e sai. Está a chover. Não se preocupa em levar o chapéu de chuva, nem em dizer adeus ao pai.

Boa escola, desejo-lhe. Questiono-me se me terá ouvido. Volto ao quarto dela e às paredes ametistas. Afasto a cortina, com pequenas estrelas pretas, e observo o passo acelerado que leva ao atravessar a estrada. Quando é que cresceste, miúda? Levanta o rosto e vejo-a olhar na minha direção e o amor de pai que lhe sinto agiganta-se por debaixo das costelas, enquanto aguardo um aceno. Porém, em vez disso, ajeita a alça ao ombro e foge da chuva, ainda mais depressa. Pego na carta esquecida e volto a guardá-la no bolso. Talvez um dia a leia para ela.

Em cima da mesa de cabeceira, as pedras energéticas defendem-na à distância; o quartzo branco, a aventurina verde e o jaspe vermelho aguardam a chegada da escola. Falta a turmalina negra no poiso. Descobri que a acompanha diariamente.

 Durante o vazio em que penso nela, entrego-me aos ponteiros do relógio que rodaram como laivos de felicidade. Levam-me como as ondas do mar. Ainda estava no quarto quando ouvi a porta de entrada e a vi chegar da escola.

Atirou a mala para o chão produzindo um baque que não a fez mover os olhos do ecrã iluminado. Gargalha de coisas que não compreendo e nem parece notar a minha presença. Pigarreio. Mas o som artificial das teclas sobrepõe-se à minha voz.

Deita-se na cama. Vejo como a brancura dos dentes contrasta com o tom avermelhado dos lábios. Ri-se para a câmara e tira uma ou duas selfies. Toma lá, ouço-a dizer, regozijando com alguém que desconheço.

Vejo-a carregar no play da lista de músicas guardadas. Ecoam os primeiros acordes de violino emparelhados com o clarinete, a letra do Notion solta farpas.

Levanta-se da cama ao mesmo tempo que me ergo. Sem a querer ofender, vejo-me obrigado a desligar a música. Precisamos de falar. Volta-se para o telemóvel tão rápido quanto o silêncio que se instalou. Encara-me pela primeira vez, mas o olhar dela atravessa-me e morre nas gotas de chuva que marcam o vidro do lado de fora. Volta a ligar a música e eu desisto.

Veste a camiseta vermelha que o padrasto lhe ofereceu no Natal, uma saia aos quadrados curta e observo como é bonita. Olha-se ao espelho em modo de aprovação, manda mais uma mensagem. Estou preocupado contigo; deixa-me acompanhar-te, peço-lhe. Apesar de não tirar os olhos do telemóvel, encolhe os ombros enquanto oiço mais uma mensagem a escorregar-lhe pelos ágeis dedos.

(Até este ponto, as migalhas espalhadas pelas mãos doces da minha filha, eram entendidas por mim como sinais de uma possível reconciliação).

Saímos de casa lado a lado. Nem tenho coragem de lhe perguntar onde vamos. Desde que não andemos de metro, comento-lhe, sabes como odeio a sensação de estar debaixo de terra. Felizmente, continuamos a andar depois de termos passado pela boca do metropolitano.

A viagem faz-se de expectativa e de silêncio. Como ela não fala, eu também não. Deixo-me embevecer com o seu rosto, com o véu de chocolate negro que lhe realça os olhos rasgados. Vejo que tem um cabelo na boca, mas não quero cortar-lhe as reflexões. Entristece-me vê-la ofendida com a vida de uma forma que não consigo compreender.

Estancámos defronte de uma porta tosca pintada de preto. Aguardámos o efeito da campainha. Eis que a porta se abre e fico nauseado com a nicotina que envolve a atmosfera, noutros tempos teria tido um ataque de tosse. No espaço são todos jovens e diria que a conhecem bem. Palram ao mesmo tempo, por cima da música que exprime uma emoção camuflada entre o eufórico e a descontração.

O balcão, envolvido por espelhos, faz as delícias daqueles que sofrem do culto de dulia, porque permite que todos se mirem, orgulhosos e exuberantes enquanto puxam o cabelo para trás inumeríssimas vezes e focam o olhar nos próprios lábios. Constrange-me uma mulher mais velha, que se encontra ao lado de Catarina e não tira os olhos de mim. Avalia-me. Diz qualquer coisa que não consigo compreender. Uma ladainha que aumenta de intensidade atingindo um pico de angústia; Mwenyezi, wasaidie pepo wabaya kuondoka kwenda kwenye nuri1. Uma língua nativa, cristalinamente infantil, suponho. Parece assustada. Revira os olhos quando não encontra o meu reflexo no espelho. Acompanho-lhe o raciocínio e atormento-me com a minha ausência no espelho que os dois miramos. Volto-me para ela, e materializo-me na sua visão, registando toda uma vida passada. Deve ter sido suave morrer, pensei. Preferia que não tivesse sido assim a descoberta da minha nova morada, um plano onde o olhar de Catarina nunca me encontrará.

 

1“Todo-Poderoso, ajude os espíritos malignos a partirem para a luz”

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AUTOR(A)
Cláudia Passarinho
Cláudia Passarinho

Cláudia Passarinho nasce no ano de 1980, em Lisboa, é a quarta geração a residir numa vila Lisboeta por onde tantos escritores já passaram. Licenciou-se em Desenvolvimento Comunitário e Saúde Mental pelo Instituto Superior de Psicologia Aplicada em 2004, tendo posteriormente completado uma pós-graduação em Gestão de Recursos Humanos.

É casada e mãe de dois filhos. Da sua família sacia o amor, a união e a força para os seus projetos.

É nas páginas dos livros que encontra refúgio e será através das suas palavras que procurará deixar um legado. Conta com a participação em várias coletâneas e revistas digitais, enquanto contista. É co-fundadora do podcast «Livros a três» e desenvolve um papel ativo em projetos de formação de Escrita Criativa e na divulgação da importância da leitura.

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