SONHO:
Atividade mental não dirigida, que se manifesta durante o sono, e da qual, ao acordar, se pode conservar certa lembrança; conjunto de ideias e de imagens que perpassam o espírito; o que é produto da imaginação, devaneio, desejo veemente, aspiração; projeto cuja execução parece difícil ou impossível, utopia; coisa muito bela; visão
In Infopédia,pt 15-10-2021
A aventura começou sem sermões. Apenas um: porque não? curto e desajeitado.
«Partiste de um sonho», dir-me-ias tu, avó. Eu dir-te-ia que o sonho é que partiu de mim.
Nas mãos transportava duas malas. Na direita, meia dúzia de roupas que, enquanto não estivesse devidamente instalada, teria que bastar. O pouco seria o suficiente. Pendia a mais pesada na mão esquerda. Dentro dela a vida. A prova da longevidade. Seria mais uma existência num monte cheio dela.
No topo do outeiro, o vento não me emaranhou o cabelo, tornando-o tão solto quanto desconfortável. Tal como os longos entrançados que a avó me fazia, com início no topo da cabeça. Naquela altura, os puxões pareciam-me excessivos, mas hoje penso neles com saudade. Houve momentos em que desejava ter coragem para fugir debaixo das mãos dela, especialmente quando arrepanhava finos fios que chegavam a humedecer-me os olhos. Se fugisse, fugiria para a paisagem, com a qual me deparo trinta anos depois. Nunca serei tão boa quanto ela, mas encontro-me focada na técnica de fazer crescer (sozinha) uma oliveira e a mim. A liberdade tem destes inconvenientes, e o maior deles é aprender a gerir a solidão.
Voltemos à mala da mão esquerda: penso na raiz ainda no escuro. Embrulhada num plástico com pouca terra húmida. A humidade dá-lhe oxigénio e mantem-na ligada ao solo, pedindo-lhe apenas algumas horas para poder voltar a ter um espaço para ganhar novas raízes.
O pedido parece simples: desejo que a pequena amostra de oliveira se mantenha curiosa para continuar a conhecer o mundo!
Lutaremos contra o sol. Será dos raios que retiraremos energia. Lutaremos contra a chuva, pois será da sua água que consumiremos recursos. Unidas no crescimento. Significará sempre uma corrida, em que as duas estremeceremos contra o vento. Não importando o quanto poderei crescer, estou consciente que a oliveira se elevará sobre mim.
Pergunto-me se ela saberá no que um dia se poderá tornar. Sufoco uma risada com a palma da mão, mas deixo-me logo disso e liberto-me numa gargalhada, para que fuja até ao céu.
COMANDAR:
dirigir, como superior, uma força militar, um navio, etc.
figurado dominar; mandar
In Infopédia,pt 15-10-2021
Passaram-se meses e ainda aqui estou. Aquilo que parecia um cliché, assemelha-se a um diamante por lapidar. Continuo a esculpi-lo, diariamente. Cada contorno. Enquanto me volta a crescer o cabelo e os tratamentos são passado; mas essa é a verdadeira magia da coisa.
Num curto tempo, aprendi que o interior das paredes alentejanas que me albergam são feitas de taipa, herdadas da era Muçulmana.
Verdade que, quando aqui cheguei, deparei-me com alguns pontos da casa que esfarelavam ao primeiro toque. Todavia, ao contrário deles, o meu sonho alcançava consistência no momento em que os meus dedos ganhavam a cor da argila, à medida que lhes tocava.
Permito-me sentar na única cadeira, confraternizando com o crepúsculo na mesa de ferro preto, já este não precisa de assento porque é no céu que repousa. Sabe sempre bem. E olho para o meu pedaço de terra, onde ofereço tempo em troca de comida. Congratulo-me por promover o culto da luta entre o Homem e a Natureza.
Depois vem a alfazema, um aroma que dá à costa, e acorda-me do marasmo. Pego novamente no livro. Tinha parado a meio do poema “Invictus”: Não importa quão estreito o portal, /Quão carregada de punições a lista, / Sou o mestre do meu destino:/Sou o capitão da minha alma. Continuo embevecida, por tudo e por nada.
VIDA:
estado de atividade dos animais e das plantas; condição do ser animado; vigor dos seres orgânicos; ser(es) vivo(s) e/ou a(s) sua(s) atividade(s); o facto de estar vivo; o tempo que decorre desde o nascimento até à morte; existência
num sentido figurado tempo de vigência ou duração de algo; modo de viver; período específico da existência de um indivíduo; fase; idade; conjunto dos acontecimentos e experiências durante a vida de um indivíduo; motivo que anima a existência de alguém; energia, dinamismo, vigor, vitalidade
RELIGIÃO em certas doutrinas religiosas, cada uma das existências de uma alma; encarnação
em videojogo cada um dos períodos em que decorre a ação de certos jogos, durante o qual o jogador dispõe da possibilidade de atingir o objetivo proposto e que está sujeito a condição de perda relacionada com o desempenho do jogador, geralmente implicando algum tipo de penalização, como o regresso ao início ou a estágio anterior do jogo
In Infopédia,pt 15-10-2021
A essência da oliveira que vibra sob o vento é a azeitona. Já a essência do javali demora dez segundos a esvair-se.
O Joaquim Chouriço ensinou-me a disparar. Não sei se existirá o dia em que terei coragem de acertar em alguém ou em algum animal vivo. Porém, parece-me importante saber acertar numa perna ou num braço o quanto baste, provocando um ferimento e salvaguardando-me.
Disparámos os dois ao mesmo tempo, ou pelo menos assim me pareceu.
«Fui eu?» ⸺ pergunto-lhe.
«Não sei, menina.» Parece ter medo de saber.
Aproximamo-nos de espingarda ainda morna. Aperto o cano de alma lisa com a mão esquerda e com a direita faço o sinal da cruz, primeiro sobre o rosto e depois cruzando o peito, recordando-me vagamente que não sou católica. Ouço a minha respiração e as árvores que não param de acudir ao animal morto. «Era bom não presenciar a minha morte», penso. O meu bafo cheira a arrependimento e ainda me faltam cem metros para dar de caras com o inanimado. Revolta-se-me o estômago quando ouço «este é grande, menina». Contudo a alfazema, as oliveiras, as pereiras com bicho, o poço com substâncias assustadoras, estalam-me no sangue, e uma parte de mim torce no interior e arranja subterfúgios, unindo-se a este modo de vida.
Vejo o reflexo do Joaquim na íris do javali, desvio-me dois passos para permitir que o animal seja puxado por uma pata, deixando um rasto de sangue na terra arenosa.
Nessa madrugada, cheguei a casa e abracei todas as árvores do pomar e do olival. Estavam carregadas de fruto, excitadas com a primavera.
Se as árvores são eternas, cada pessoa deveria plantar uma árvore para que os outros se lembrem delas. Desta forma, agradecemos a existirmos e, quando a nossa voz deixar de se ouvir, as folhas continuarão a refolhar, não fazendo esquecer que um dia passámos por aqui.
Agora, a pele parece engelhada e de um tom acastanhado, não se parece com a minha. Atento ao tudo que sofre constantes transformações. Uma espécie de ciclos que nos transcende e nos faz partir sem defesas. Que havemos de fazer, senão viver a vida que nos procurou?