Abandonou os pensamentos quando o zumbido da chaleira vincou a existência do tempo. Deitou a água fervida sobre as raízes, onde cedo ganhou uma tonalidade amarelada. Foi incapaz de deixar que a lareira perdesse vigor e, para que não morresse, alimentou-a com dois toros espessos. Um deles rodou até aos seus pés, como se fugisse da própria natureza. Voltou a pegar nele. Um tronco de madeira não poderia ter medo de se queimar. Para além disso, o crepitar e as labaredas que o fogo produz acalmavam-lhe o espírito. Demorou a atenção na porta de entrada. Procurou imaginar o som da campainha, porque há anos que não a ouvia tocar. Focou-se nas vozes animadas que enchiam as ruas e, em simultâneo, apertou o casaco de lã contra o peito, mantendo-o preso com os antebraços.
O sol rastejou pelo parapeito, invadindo a assoalhada e criando um rio de luz que lhe iluminou os pés. Derreteu uma colher de mel dentro da chávena de chá, porque nunca gostara de chá amargo. Era a melhor decisão. Ajudaria a escorregar o líquido na garganta.
Sentou-se de frente para a janela. Pelo caixilho de madeira, gretado pelo tempo, entrava uma brisa que lhe abanava uma mecha do cabelo ruivo. Pousou a chávena no parapeito de mármore. Viu-se muito direita, contra as costas da cadeira, como era hábito sempre que a conversa era séria, antes de abrir um livro e de se dirigir ao reflexo que a mirava.
Começou. «Os besouros zumbiam à minha volta quando toquei na terra e prendi com dois dedos uma joaninha que me queria fugir. Nunca imaginara que naquele lugar ermo me sentisse em paz. Não tive coragem de esgravatar a terra. Apenas transportei a joaninha para a margarida mais próxima. Já não tenho idade para estas coisas, pensei. Mas aqui no norte, enquanto o frio congela sentimentos, há uma irmandade nos corpos que se cruzam. Toda a vida fugimos dos outros. Toda a vida fugimos de nós. Toda a vida fugimos das carícias das crianças, da proximidade dos homens, da sensibilidade das mulheres. Ironicamente, misturamo-nos com os fôlegos que a natureza produz. Porque a solidão é um caminho sem regresso.»
Fechou o livro. Sentou-o ao colo. Se fosse o filho, que nunca teve, estaria a passar-lhe a mão sobre as costas ou a abraçá-lo, murmurando uma qualquer cantiga infantil.
Ao defrontar a sua aparência, deixou a visão saltar de entre as bochechas pintalgadas e rosadas, para o olhar diamante. Despediram-se com um sorriso magro, o mesmo que há anos partilhavam no reflexo do vidro da janela. Cada uma delas absorvida na aparência da invisibilidade. Havia, porém, uma essência que resplandecia dos raios de sol teimosos em visitá-la e que dava vida ao seu reflexo. Hoje, (em particular hoje), mostrava-se morna, no último entardecer de verão.
Bebeu o chá sem dramatismos. Seria suposto ter um aroma forte, a mofo, mas não lhe soube a nada. Teria sido melhor ter-lhe colocado mais mel. Os tragos compulsivos que deu, humedeceram-lhe a vista, tornando-a incapaz de identificar as almas que passavam do outro lado da janela. Os outros circulavam num corrupio, absortos à oculta, de tão comum que se tinha tornado.
Sessenta minutos depois caiu ao chão. O cabelo emaranhou-se-lhe contra o rosto, retorcia-se entre as tábuas do soalho. Acompanhava o corpo. Por dentro, fervia-lhe o sangue. Borbulhava toxicidade, fazendo-a saltar como marioneta desengonçada. Marioneta nas mãos de uma decisão sem antídoto. A roupa, rasgou-a, enquanto emitia sons guturais. Quando deixou de querer possuir sentimentos dolorosos, de cumprir com o abandono da alma, disponibilizou-se à entrega.
A morte encerra um processo de extermínio do apego. Funciona como uma rede de pesca que identifica emoções de dor e desesperança, expulsa fragmentos da alma e depois caça-os como se fossem indefesos cardumes. A princípio, ainda procurou, contra o seu reflexo, libertar histórias e parágrafos inteiros, ideias, desejos e conceitos. Mas era tarde demais. Já os sentimentos se tinham fragmentado.
No fim, a luz apareceu. E antes de entrar no túnel, surgiu-lhe uma breve pergunta «Deus, porque nunca fui amada pelos outros?»