Percorre os corredores gelados, numa ânsia descontrolada. As luzes amareladas perturbam-lhe a visão. Por todo o lado, vozes gritam orientações, para si não soam a mais do que palavras desconexas. A mistura de cheiros fortes, sobrepostos, adensa o torvelinho na sua cabeça.
Sem nunca desviar o olhar, segue atentamente os passos desenfreados dos maqueiros que o transportam. Vê as portas brancas abrirem de par em par e a maca desaparecer na curva. O acesso é-lhe negado. Orientam-na para aguardar pelo médico na sala de espera.
As lágrimas fustigam-lhe o rosto cansado, enquanto procura resposta para as suas agonias. Não poderia imaginar que o dia mais feliz das suas vidas se transformaria num pesadelo descontrolado.
É certo que havia alguns dias que Valentim se queixara com fortes dores abdominais. Associaram a algo que pudesse ter comido e não deram mais importância ao assunto. A rotina diária afastou-os de negros pensamentos.
Ao altifalante, uma voz roufenha desperta-a da angústia em que mergulhara. Sem pestanejar, encaminha-se para onde a voz indica. A expressão pesarosa do médico que encontra desfaz-lhe a leve esperança. O médico começa, titubeante. De tudo o que diz, Susana apenas retém “lamento, a situação do seu marido é muito crítica…”. Peritonite, septicémia, são palavras que se lhe colam ao ouvido, mas não ouve nada mais. O vazio que lhe percorre o ser açambarca-a tal qual um usurpador, cola-se na pele e suga as entranhas.
Concedem-lhe autorização para o ver através do vidro. Equipada a rigor, dentro da parafernália de acessórios que a assistente ajuda a vestir, entra na antecâmara do quarto, e ali se queda. Valentim, o seu querido Valentim, jaz envolto em fios, máquinas, tubos, segurando-o à vida. Segue-lhe os movimentos do peito, irregulares e fracos.
As lágrimas soltam-se, desobedientes, gotejando por entre os dedos. As mãos suplicantes escorregam pelo vidro, deixando um rasto de desolação.
Instintivamente, a mão direita aninha-se no ventre, lembrando-lhe que não está só. O choro redobra e, pela cabeça, avolumam-se questões, para as quais não encontra justificação.
— Porquê o Valentim!? Estamos tão perto de concretizar o nosso sonho… anos e anos de tentativas, exames, consultas, porquê agora!? Como vou suportar, sozinha!? — num desespero aterrador.
As forças abandonam-na. Fecha os olhos, enquanto uma forte vertigem lhe sacode o corpo. Por instantes, não reconhece o espaço onde se encontra, tudo lhe parece estranho e confuso, sem perceber o que faz ali. Uma enfermeira vem em seu auxílio. Demora a recuperar a consciência dos acontecimentos, como se tudo tivesse ocorrido numa vida passada. Aos poucos, o espaço clareia e devolve-lhe a perceção dos factos. Valentim permanece imóvel.
A casa, outrora alegre, é palco de uma agonia imemorial. Fragilizada, Susana abandona-se pelo chão, enquanto lágrimas derramadas lhe queimam a pele, arranham a garganta seca. Agarra-se à barriga, vociferando impropérios, até perder as forças. No meio da desolação, só uma certeza permanece: é urgente abdicar da realização daquele sonho; sem Valentim não faz sentido continuar.
Não consegue precisar quanto tempo permanece abandonada pelo chão, em posição fetal. Desperta, estremunhada e tremelicante. O frio dos mosaicos enregela-a e até o coração se assemelha a pedra. Agarra no telemóvel, caído da mala aberta. A fotografia do ecrã, onde Valentim sorri em grande plano, arrepia-a. Levanta-se a custo, olha à volta, como se o procurasse.
Em todas as divisões, o mesmo vazio. Deixa-se cair na cama, exausta. Adormece, todavia, o sono não é tranquilo. Valentim aparece por fim, esticando-lhe a mão aberta. Susana deixa-se levar no seu encalço, contudo não o consegue segurar. Mal percebe as palavras que brotam da sua boca, só distinguindo duas: sonho e filho. E Valentim desaparece.
Susana acorda num repelão. Encharcada em suor, recosta-se nas almofadas, dominando a custo a respiração arquejante. O sol desponta pelas frinchas da janela e o ar fresco da manhã ajuda-a a raciocinar com clareza. Estonteada, veste-se apressadamente e corre para o hospital.
É neste mesmo hospital que Susana entra todas as manhãs, religiosamente, à mesma hora. A barriga crescente acompanha-a nesta malograda jornada. Cada dia que passa, a esperança da recuperação de Valentim é reduzida. Mas todas as noites, Valentim está presente e sussurra-lhe ao ouvido:
— Amor, nunca desistas do nosso sonho!
Susana leva sempre uma novidade para contar a Valentim. Tem autorização para permanecer no quarto, junto dele, o tempo que lhe convir. Numa das tardes, coloca-lhe a mão sobre o ventre, fazendo-o sentir ligeiros pontapés. Há uma pequena reação, quando dos olhos cerrados de Valentim brotam discretas lágrimas. Susana chora, ri, estremece, num misto de emoções. Ao segundo toque ritmado da campainha, a enfermeira Júlia entra no quarto. Emociona-se com ela, abraça-a, conforta-a.
— Pequenas, mas importantes melhorias — sorri Júlia, ternurenta. — Tenha esperança, é a vida que aí vem.
Madrugada dentro, Valentim piora. Levado de urgência para o bloco operatório, a situação é delicada. Susana segue para o hospital, tão depressa quanto a sua barriga de oito meses o permite. Agarrada a um terço, é a imagem da desolação naquela fria sala de espera. Pobre Susana, perdida num abatimento absoluto, a viver o sonho da maternidade, por entre o pesadelo da doença. A vida e a morte. Antagonistas. Caminhando pela mão de Susana, lado a lado. Quão ténue pode ser a linha que as separa?
Ao raiar da aurora, enquanto Valentim luta para afastar a morte, Susana traz ao mundo a vida, embrulhada em tons de azul. O pequeno Valentim repousa na quietude do berço. Susana experimenta uma paz invulgar, que a enleva e faz sorrir. Como que num murmúrio, uma voz conhecida segreda-lhe ao ouvido:
— Obrigada amor, por não teres desistido de viver o nosso sonho! Estarei sempre aqui para ti… — olhando para o berço — para vocês!